Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O porto de Mariel e a democracia

Neste país, qualquer matéria relativa a Cuba tem o condão de atiçar debates entre a esquerda e a direita, a situação e a oposição, os petistas e os tucanos. Na visita da blogueira ou na importação dos médicos, as acaloradas controvérsias foram inevitáveis. No episódio da última semana, não foi diferente.

A polêmica envolveu o anúncio, feito pela presidente Dilma Rousseff, do financiamento de 80% das obras do porto de Mariel, em Havana, por intermédio de recursos do BNDES, banco público brasileiro. Segundo a Folha de S.Paulo (27/01), em dois anos o montante de créditos disponibilizados para a ilha dos irmãos Castro chegou a cerca de 1,2 bilhão de reais. As primeiras reações foram previsíveis. Na imprensa, adeptos de uma linha editorial mais conservadora apontaram que, em face de nossa mazela social, não faria sentido emprestar dinheiro aos caribenhos. Antes, teríamos de resolver os próprios problemas. Opositores mais sofisticados também argumentaram que a ação brasileira oxigenará um regime ditatorial moribundo, que não demonstra apreço pelos direitos humanos.

Para rebater as críticas, a militância governista aferrou-se à justificativa estratégica. Valendo-se de entrevista concedida pelo diretor de relações internacionais da Fiesp a um programa de TV – que “viralizou” nas redes sociais –, alegou que, com a iminente abertura da economia cubana ao mundo, a iniciativa desencadeará um ciclo virtuoso de cooperação entre o Brasil e o Caribe, além de colocar os empresários brasileiros em posição privilegiada naquele mercado.

Falta de transparência

Não obstante, o financiamento do porto via BNDES também reforçou a hipótese – bastante plausível e difundida – de que estaria em curso mais um lance da “diplomacia companheira”, dócil e generosa com os aliados esquerdistas na América Latina. Ora, governar é fazer escolhas. E, mesmo que o financiamento do porto se mostre alternativa viável e promissora, a escolha de Cuba como destino preferencial dos investimentos deu-se em detrimento de outras opções igualmente razoáveis e tecnicamente hígidas. Aparentemente, pesou na decisão a variável partidária.

Pergunta-se: entre (1) a crítica fácil e raivosa ao socialismo cubano, que obstrui canais diplomáticos entre Brasília e Havana, (2) o cálculo dos técnicos da Fiesp, orientado tão-somente para os lucros do grande empresariado e (3) a alocação do recurso público do BNDES com base nas afinidades interpessoais e interpartidárias, por qual caminho a nossa jovem democracia deve seguir? “Nenhum dos anteriores” é, em tese, a única resposta correta. Na formulação cristalina do argentino Guillermo O’Donnell, “afora a democracia, todos os outros tipos conhecidos de autoridade derivam a sua legitimidade para governar de instâncias não democráticas”. Demagogia, plutocracia e partidocracia não passam de corruptelas, ou versões degeneradas, de um regime democrático.

O financiamento do porto de Mariel com dinheiro público brasileiro é exemplo didático de como estamos perdendo a capacidade de fazer conexões básicas e necessárias para a vida sob a vigência de instituições democráticas. Em meio à grita geral, pouco se questionou a falta de transparência e clareza sobre os critérios que determinam como o BNDES deve atuar pelo mundo afora. Esse é – ou deveria ser – um tema do mais alto interesse nacional.

******

Dawisson Belém Lopes é professor de política internacional e comparada na UFMG e autor de Política Externa e Democracia no Brasil