Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Nos trilhos de Millôr

Nós, do interior, precisamos criar caso para fazer o tempo passar. Foi numa dessas que desafiei-me: seria capaz de conseguir um cartum exclusivo de Millôr Fernandes para a capa do segundo aniversário de “O TREM Itabirano”, jornal mensal que edito na cidade mineira, terra de Drummond?

Sim, queria um desenho do superabundante Millôr, o homenageado da Flip deste ano, ótimo escritor, frasista perfurocortante, jornalista invenal, um dos criadores do mítico “O Pasquim”, fustigador da burrice, cartunista de primeira, tradutor de respeito, humorista fino e culto, enfim, um brasileiro que o Nobel de Literatura não teve a honra de ganhar. Pensei: se convidar Millôr para fazer o cartum e ele não aceitar, só duas pessoas saberão da minha derrota, ele e eu. Se topar, o mundo é meu.

Se é para gastar atrevimento, que seja com graúdos. Mandei um e-mail a ele, fazendo o convite e perguntando preço. Uns dois dias depois, me respondeu: “Topo, desde que você me mande dizer formato, cor e, mais ou menos, o que devo fazer. Meu preço é, adiantado, R$ 55,20. Abracadabraço”.

Ripada no pensador

Brincadeira por brincadeira, pus R$ 55,25 num envelope, e escrevi: “Pagamento ao Millôr. Bom negociar com você. Não queremos o troco”. Mandei pelos Correios, com exemplares do jornal.

Dei uma semana e enviei outro e-mail, perguntando pelo cartum. Resposta: “Que fazer?, como perguntava Lênine. Estou em falta com vocês, brilhantes itabiranos, que me tratam com tanta condescendência –é essa a palavra? Afinal, qual seria o meu compromisso? Um desenho qualquer? Uma obra-prima? Kisses”.

Quero sua visão sobre um trem mineiro, expliquei, refletindo preocupadamente sobre a audácia de pautar um gênio. Senti-me um pouco Rosário Fusco, da revista modernista mineira “Verde”, que, ao pedir colaboração a Mário de Andrade, sugeriu ao paulista mandar uma “bosta qualquer”.

Dias depois, chegam-me dois desenhos por Sedex. Bolei a capa, deixei a Redação e, ao retornar, ouvi da nossa secretária: “Ó, um tal Millôr Fernandes ligou para você”. Não telefonei de volta, agradeci-o por e-mail e insisti em pagá-lo. “Mesmo sendo você um jornalista sem fins lucrativos’ e mesmo não tendo dinheiro que pague, mande-nos a conta, por favor.” Não mandou e nem resposta deu.

Não sei se exagero, mas acho que o caso dá um parágrafo numa boa biografia de Millôr: um gigante que, aos 83 anos, colaborou cortesmente com um novato jornal de interior, que ele nem conhecia.

Desde então, passei a mandar “O TREM” para o Millôr, e –faço questão de ressaltar–nunca mais o incomodei. Até pensei em contratá-lo para criar a logomarca do jornal, mas me contive. Espontaneamente, porém, ele passou a me dar dicas por escrito.

Sugeriu melhorar a diagramação. “Ô pessoal d’O TREM Bão, menos matéria, gente! Senão fica ilegível. É como o cara bacana que tem muita ideia e quer dizer todas ao mesmo tempo. Vamos AREJAR o pedaço”, aconselhou.

Também reclamou do tamanho das frases no alto das páginas. “Caro Caldeira (valha a aliteração), o jornal vai de vento em popa (sobretudo, espero, a popa), arejou bastante. Claro, pode arejar mais. Não desculpo as frases estarem com tipos tão pequenos e claros. De modo geral, estão muito bem escolhidas. Mas por que não, uma vez ou outra, dar, entre parênteses, uma ripada no pensador mais pomposo? AbrAÇO.”

Bola dentro

Em outra mensagem, citou um tal Ciro, que até hoje não descobri quem é. “É esse o caminho, Caldeira –apresentar ao mundo o Brasil, o cosmopolitismo da província. Sapato neles! Como diria o Ciro, O TREM é do caralho.”

Outra sugestão foi brincarmos com a escultura de Drummond na capital fluminense. “Por que vocês não pegam a estátua do Drummond, aqui no posto 6 de Copacabana, e fazem dela o embaixador de Itabira no Rio de Janeiro? A estátua, que poderia ficar relegada’, já está virando uma integração na paisagem. Itabira hoje é uma estátua alegre ali no posto 6.”

Desconheço se outro jornal mineiro teve a graça de ter uma capa de aniversário feita com exclusividade por Millôr, inspiração permanente para “O TREM”. Millagradecimentos e sapato neles!

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Marcos Caldeira Mendonça, 37, é jornalista, editor do jornal O TREM Itabirano