Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Birra criacionista vs. conquistas darwinistas

Em uma página (ou, mais precisamente, duas colunas e meia de texto), a revista Veja (edição 2363, de 26/2/2014) expõe tanto preconceito e tanta maçaroca de temas que consegue apenas desinformar e confundir, praticando um jornalismo às avessas. A página seguinte à da matéria “Macacos me mordam” (p. 76, 77) é desperdiçada com fotos enormes e meramente ilustrativas (como a do menino olhando para dois chimpanzés, numa tentativa não tão sutil de sugerir um parentesco), quando o espaço seria mais bem utilizado com esclarecimentos e detalhamentos do assunto. O subtítulo da reportagem torna explícita a intenção do texto: “Congressista americano propõe lei contra o ensino da teoria da evolução no Missouri e reacende a birra dos criacionistas contra as conquistas do darwinismo”. Vamos por partes…

Quando se diz que os Estados Unidos são o país mais avançado em pesquisas científicas e que, no entanto (mas não apesar disso), têm uma das populações mais cristãs do planeta, os ateus e darwinistas resmungam e dizem que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Tudo bem. Pode ser. Mas quando um congressista propõe uma lei questionável, aí a culpa é de todos os criacionistas, aquele pessoal birrento que vive criando caso. Aí, sim, uma coisa tem tudo a ver com a outra. Mas não foram os criacionistas que propuseram a tal lei. Foi um político, talvez apoiado por um grupo de religiosos que não têm mais o que fazer. E eles não me representam!

Outra coisa: como assim, conquistas do darwinismo? Não seriam conquistas da biologia, da medicina, da bioquímica? Que conquistas seriam essas inspiradas numa hipótese que nem comprovação científica tem (e aqui me refiro à macroevolução)? Do jeito que se escreve, dá-se a impressão de que a ciência quase depende do pensamento darwinista para existir. Então por que não há prêmios Nobel em biologia evolutiva? Se o darwinismo é, como dizem alguns, a base da biologia e esta a base da medicina, o que dizer de muitos avanços reais na ciência médica que foram feitos por cientistas que nem sequer aceitavam a teoria da evolução? Por exemplo, a crença de Louis Pasteur de que, na natureza, a vida só poderia vir de outra vida, o que levou à formulação da lei da biogênese, refutando, assim, a crença evolucionista da geração espontânea. As descobertas “criacionistas” de Pasteur serviram de base para invenções como a pasteurização e a vacina contra a raiva e o carbúnculo. Outros criacionistas proeminentes na área da medicina foram Joseph Lister (pioneiro na promoção dos princípios da cirurgia antisséptica) e o dr. Raymond Damadian (inventor do scanner de ressonância magnética).

“Maus efeitos”

O dr. David Menton, que foi professor na escola de Medicina da Universidade de Washington, disse certa vez: “Os professores [de medicina] não podem perder muito tempo com a teoria da evolução, uma vez que eles têm verdadeiro conhecimento médico para passar aos estudantes, e perder tempo com especulações evolutivas é um desperdício. Se removermos a teoria da evolução do nosso estudo, não há nada no domínio da ciência empírica que não possa ser feito de forma progressiva.” Aliás, medicina e evolução se tornam até termos quase que mutuamente excludentes, já que a evolução sustenta a sobrevivência do mais apto/forte e a medicina procura ajudar justamente os “fracos”… O próprio Darwin destacou isso em seu livro The Descent of Man (2ª ed., 1887, p. 133, 134):

“Com os selvagens, os fracos de corpo e mente são rapidamente eliminados; e aqueles que sobrevivem normalmente exibem um vigoroso estado de saúde. Por outro lado, nós, homens civilizados, fazemos tudo o que é possível para limitar o processo de eliminação: construímos asilos para os imbecis, os mutilados e os doentes; instalamos leis para os pobres; e nossos homens dentro da medicina fazem todos os esforços para salvar a vida de todos, até ao último momento.

“Existem razões para acreditar que a vacinação preservou milhares com vida que, devido a sua fraca constituição, teriam sucumbido à varíola. Devido a isso, os membros mais fracos das sociedades civilizadas propagam o seu tipo.

Qualquer pessoa que já participou na criação de animais domésticos saberá que isso [a preservação dos mais fracos da sociedade por meio da medicina] deve ser altamente prejudicial para a raça humana. É surpreendente como a necessidade de cuidados, ou cuidados mal direcionados, leva à degeneração das raças domésticas; mas, excetuando o caso do ser humano, ninguém é tão ignorante para permitir que seus animais mais defeituosos se reproduzam.

A ajuda que nós sentimos necessidade de disponibilizar para os mais desamparados é em grande parte um resultado incidental no nosso instinto de simpatia, originalmente adquirido como parte dos instintos sociais, mas posteriormente prestados na maneira indicada previamente e de modo mais terno e mais amplamente difundida. Além disso, não podemos controlar nossa simpatia sem deteriorar a parte mais nobre da nossa natureza. […] Temos, portanto, que suportar os inquestionáveis maus efeitos da sobrevivência e a propagação dos mais fracos.”

A versão mais absurda

Voltando ao texto da Veja… A autora se refere aos “princípios” da teoria da evolução e às “teses” e “doutrinas” criacionistas, numa clara tentativa de induzir o leitor a pensar que evolução é ciência amparada em princípios (quem sabe leis) e que o criacionismo se trata apenas de religião. Ela poderia ter usado o espaço de uma foto da página seguinte para, pelo menos, explicar que há aspectos da teoria da evolução que são puramente especulativos e que há argumentos criacionistas amparados pela ciência, e que ambas as cosmovisões apresentam evidências científicas permeadas de pensamento filosófico. Mas pra que explicar isso, quando a intenção é blindar uma teoria e “detonar” a outra, usando generalizações injustas? Explico: não conheço um criacionista (pelo menos do meu círculo, aqui no Brasil) que defenda o fim do ensino da evolução nas escolas ou que queira se meter em brigas judiciais para defender seus pontos de vista. Mas a repórter quis ouvir algum desses? Não. Preferiu o jornalismo de gabinete que depende de informações das agências de notícias e de uma boa dose de interpretação à distância. Faltou “gastar sola de sapato”, como diria Gay Talese.

Veja tenta sutilmente ridicularizar os personagens bíblicos Adão e Eva e a criação deles. Mas depois cita a tese macroevolutiva “segundo a qual evoluímos de animais inferiores, dos primeiros protozoários do mar e, depois, do macaco”. Se você pudesse se despir de sua cosmovisão e de seus preconceitos, sinceramente, qual versão das origens lhe pareceria mais absurda? (1) A versão segundo a qual informação complexa e específica e sistemas irredutivelmente ultracomplexos (como as máquinas moleculares) dependem de uma fonte informante e um planejador, ou (2) a versão segundo a qual elementos inorgânicos teriam casualmente se juntado, tornando-se orgânicos e vivos, e informação genética teria surgido também por acaso e adquirido a capacidade de se replicar e se tornar cada vez mais complexa, a ponto de possibilitar o surgimento de novos planos corporais e órgãos essenciais? Qual lhe soa mais “fictícia”?

Outra fonte

Há um parágrafo na matéria que eu simplesmente não entendi: “Se os criacionistas fossem mesmo completamente fiéis a suas ideias, seria o caso de recusarem tratamento com remédios testados em experiências com primatas, dada a semelhança genética deles com a nossa (99,4% dos DNA humano é igual ao do chimpanzé).” Deixando a baboseira dos 99% de semelhança (assunto já desmentido, embora Veja ignore), que história é essa de que criacionistas deveriam recusar remédios testados em animais? Não são os criacionistas que consideram os macacos parentes. Para os criacionistas, macacos são animais. Eles podem até recusar esse tipo de medicamento por outras razões (crueldade com os bichos, por exemplo), mas não por causa da alegada semelhança genética na qual não acreditam. Se alguém deveria recusar esses remédios são os evolucionistas, afinal, os testes são feitos nos parentes deles.

Depois a matéria requenta o famoso “julgamento do macaco”, de 1925 (e gasta mais da metade do texto nisso), em que um promotor sem conhecimento científico falou algumas bobagens e um juiz não muito correto deu ganho de causa para o “criacionismo” (sim, entre aspas, porque novamente esse pessoal não me representa). De lá para cá, os evolucionistas usam essa história ad nauseam como exemplo de intolerância e estreiteza mental dos “criacionistas”.

E a matéria termina assim: “Da recente proposta do parlamentar americano, e daquele episódio de 1925, brota uma conclusão: quem procura lógica entre os religiosos radicais está procurando no lugar errado”. E eu poderia parafrasear dizendo que quem procura informação correta sobre os meandros dessa controvérsia entre criacionistas e evolucionistas deveria procurar noutra fonte que não a Veja.

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Michelson Borges é jornalista e mestre em teologia