Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um país que precisa ir ao divã!

Estamos tendo o “privilégio” de assistir a um momento interessante da política nacional: um susposto confronto entre “saudosistas do golpe de 64” e “antifascistas”. Digo “interessante”, embora pense em “ridículo”, porque esse confronto diz respeito a meia dúzia de gatos pingados que saem às ruas para afrontar a imensa maioria da sociedade brasileira, que não quer entrar nesta brincadeira. Mas, vamos lá, o que existe aí e que pode ser entendido apesar de seu aspecto grotesco? Existem setores da imprensa que “compram” esta leitura como se ela dissesse algo sobre a realidade, afinal denominar os black blocs de “antifascistas” é o mesmo que acreditar que 500 pessoas defendendo a volta de um regime militar significa algo realmente importante. Mas, por que alguns setores da imprensa embarcam nessa? A sociologia e a ciência política estão aí, todos os dias, tentando explicar tudo isso, mas há algo que a psicanálise possa dizer sobre isso?

Nesse momento lembro-me de um pequeno ensaio do professor Fábio Hermann [Psicanálise e Política – no mundo em que vivemos. O autor foi presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. O texto foi escrito em janeiro de 2003] onde discutiu um pouco esta questão do relacionamento da Psicanálise com a Política. Ele nos lembrou, por exemplo, que não caberia à psicanálise ficar presa a conteúdos éticos ou “recomendações”. Isso seria cair na abstração ou no idealismo ingênuo e, para isso, convenhamos, já existem outras disciplinas. É bom lembrar também que alguns podem achar estranho a psicanálise tentar dizer algo sobre a política, mas se voltarmos um pouquinho a Freud vamos perceber que, na continuidade de seu desenvolvimento teórico, determinados conceitos como o de agressividade e de pulsão de morte, por exemplo, o levaram a pensar cada vez mais sobre o “social” que existe para além do aparelho psíquico do indivíduo. Portanto, não há um “Freud social” ou “obras sociais de Freud”, o que há é uma psicanálise que em sua própria evolução conceitual e científica sai do indivíduo e alcança uma psique que é social, ou do “real”. Mas, o que o saudoso professor Fábio Hermann nos disse?

Em sua rápida análise, recuperou o que a Sociologia já nos disse bem sobre nossa época: um mundo globalizado, profundamente tecnológico, com amplo domínio da especulação e, tudo isso, se refletindo na construção de um indivíduo caracterizado por uma “impotência patológica”, onde para sentir-se valendo algo teria que imitar o novo ritmo das coisas e produzir efeitos rápidos, marcantes e autônomos (como no caso dos atentados terroristas, por exemplo), como num frenesi publicitário de si mesmo. E como isto se refletiria na vida política? A política tenderia, cada vez mais, ao “ato puro”, sem objetivo racional e debatido de antemão, impensado, e que visa apenas efeitos e mais efeitos, como uma resposta à erosão do pensamento. Seria o “máximo de efeito com a mínima participação social”, uma espécie de “psicose de ação”.

A burrice e o dualismo maniqueísta

Hoje, grupos como o dos black blocs, por exemplo, possuem um objetivo claro: vão à rua para criar “efeitos”, “atos puros”, sem que importe a ideia de ter pro trás de si um movimento social ativo e eficaz. Pelo contrário, eles são a sua antítese e vieram com o objetivo político de dissolver as grandes manifestações espontâneas que estavam crescendo em 2013. Ter opinião, hoje em dia, então, não implica mais em “pensar”, mas em somente partir para o “ato”, como uma espécie de “torcida”, onde estamos a favor ou contra. Presenciamos, então, uma “perda de substância social das decisões políticas”. Tudo isto parece mesmo ser um sintoma da perda geral de substância que afeta a vida contemporânea. O homem sente-se ameaçado diante da economia e parte para reações exacerbadas de insegurança existencial, como o consumo desesperado, que se estende do consumo de bens ao consumo de drogas, além de um notório acréscimo nos atos de violência pessoal. O cotidiano está sendo demasiadamente fabricado de modo artificial e alienante. A superfície da realidade foi-se transformando numa interface onde basta clicar um ícone e aí vem a sensação de que toda a experiência da vida não passa de uma “invenção descartável dos meios de comunicação”, onde tudo dura um instante e depois a gente muda de assunto. Há, portanto, uma acelerada “crise de desrealização”, como nos dizia Fábio Hermann.

Então, aproveito essa noção de “crise de desrealização” para voltar ao que falei no início do texto, ou seja, sobre esse suposto enfrentamento entre saudosistas do golpe de 64 e black blocs “antifascistas”. Nada mais irreal que isso. Mas isso serve a algo e a alguém? Sim, existem setores políticos que só conseguem sobreviver hoje se for através dessa forma maniqueísta e simplista de se ver o mundo e definir as coisas e as pessoas. Só conseguem enxergar o outro como “inimigo” e dividem o mundo em “mocinhos” e “vilões”, em “bem” e “mal”. Esse tipo de pensamento dualista é típico do fascismo e o que me surpreende é que setores da mídia e da própria universidade estão embarcando nessa. Tudo está se transformando num tipo de embate que é essencialmente “burro” e “mesquinho”. Ou seja, se eu falo algo isso me soa como “verdade”, se o outro fala algo, necessariamente, então, é uma “mentira”.

Nada mais ideológico e nocivo que esse tipo de pensamento pobre intelectualmente. A sociedade é muito mais complexa e nela, me parecem, há muito pouco espaço para “mocinhos e vilões”. Agora cabe perguntar: quem tem interesse nesse discurso “burro”? Quem ganha com uma sociedade que se divide a cada dia? Quem disse que a esquerda, por ser “esquerda” tem a verdade consigo? O drama é que no meio desse debate inútil e que só interessa a quem quer o poder para obter suas vantagens pessoais, fica o grosso da população que ainda não sabe lidar com o conceito de “cidadania”. Porque se já soubéssemos mesmo o que é ser “cidadãos” a política não seria esse “reino da loucura” e da corrupção que é hoje em dia.

O Brasil precisa mesmo ir para o divã cuidar de seus ressentimentos, paranoias e egocentrismos. Estamos presos a raivas, rancores e desejos de vingança, muitas vezes oportunistas, que nos mantém como “infantis” e “mimados”, “donos da verdade”. Só a cidadania e a democracia vão nos fazer amadurecer e superar este infantilismo a que estamos presos. Mas, quem está mesmo disposto a defendê-las a todo custo? Nem os “saudosistas” nem os “antifascistas” têm nada a oferecer nesse sentido! E alguns setores da mídia, vão continuar noticiando tudo como se fosse um espetáculo, ou vão exigir e propor mais “pensamento” e menos “efeito”, menos “ato puro”?

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José Henrique P. e Silva é psicanalista e cientista político