Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um homem de visão documental

Em 1996, ano de nascimento do É Tudo Verdade, 19 longas-metragens brasileiros haviam estreado nas salas de cinema. Todos filmes de ficção. No ano passado, 127 títulos nacionais foram lançados no circuito. Desse total, 52 eram documentários. Se existisse bola de cristal, não seria descabido imaginar que Amir Labaki, criador do festival, tinha uma em mãos quando criou o evento que se tornaria a principal mostra de documentários da América Latina.

“Quando o festival começou, defendíamos o documentário como sendo uma forma de expressão nobre, rica e variada. Mas nem nos meus devaneios mais otimistas eu poderia imaginar que essa seria uma causa tão vitoriosa”, diz Labaki, às vésperas de colocar na rua, em São Paulo e no Rio de Janeiro, a 19ª edição do É Tudo Verdade. Com abertura na quinta em São Paulo e na sexta no Rio, o festival exibirá, até 13 de abril, 77 títulos vindos de 26 países; depois disso, segue para Campinas, Brasília e Belo Horizonte.

Vitrine privilegiada do gênero, o É Tudo Verdade é, hoje, espelho e reflexo de um fenômeno que marcou o cinema nos primeiros anos do século XXI: o boom na produção documental. Para se ter uma ideia, a edição deste ano teve 1,3 mil filmes inscritos, sendo 450 deles brasileiros – curtas e longas-metragens incluídos.

“Com o digital, a produção expandiu-se e a distribuição ganhou novos canais que não apenas a sala de cinema ou a TV. O documentário ficou mais perto de todo mundo”, afirma o diretor do festival. “Existe uma curva ascendente do gênero no mundo, que passa não só pelo aumento na produção, mas pela ousadia formal e pelo desejo de se alcançar um público mais amplo.”

Antes tido como sisudo e enfadonho, o documentário passou a ser compreendido como nuançado e potencialmente divertido, Apesar de, comercialmente, ser difícil o retorno, é cada vez maior o número de filmes que consegue vender uma quantidade considerável de ingressos. Basta lembrar, por exemplo, de “Janela da Alma” (2001), dos brasileiros João Jardim e Walter Carvalho; “Fahrenheit 11 de Setembro” (2004), do controverso Michael Moore; e “O Equilibrista” (2008), de James Marsh, vencedor do Oscar em 2009.

Pontos de contato

Labaki, que por gosto e por ofício mantém os olhos pregados em tudo que cerca o gênero, defende que o maior interesse se deve também ao fato de que, atualmente, vivemos todos numa “esfera documental”. As verdades reconstituídas, ou supostos registros do real, podem ser encontradas nas artes visuais, no teatro, na fotografia e na literatura. Isso sem falar nas vidas registradas 24 horas por dia em fotos, vídeos e “posts” espalhados pelas redes sociais.

Mas, quando o É Tudo Verdade começou, a história era outra: o documentário ficava à margem do cinema e da criação artística em geral. O sonho de criar um espaço nobre para o gênero “patinho feio” foi colocado em prática em 1996, logo após Labaki ter deixado a diretoria do Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS), onde havia ficado por dois anos.

A primeira edição reuniu, numa mostra não competitiva, 29 títulos, sendo apenas 16 longas-metragens. Labaki vara 19 anos no tempo e sorri: “Eu jamais poderia imaginar que, a partir daquilo, minha carreira seria, prioritariamente, trabalhar com um evento chamado É Tudo Verdade e seus desdobramentos: um programa no Canal Brasil, uma coluna semanal de jornal [no Valor] e a organização de outras mostras durante o ano. Eu não tinha a menor ideia”. Podia não ter ideia do que estava por vir, mas tinha a tenacidade que o empreendedorismo cultural requer.

Olhos firmes, um pouco desconfiados, Labaki prefere falar de documentários a falar de si. Mas, numa das poucas frestas da vida pessoal abertas durante a entrevista, admitiu estar quase o tempo todo trabalhando – levando-se em conta que, no seu caso, os filmes, que ocupam a quase totalidade de sua vida profissional, são também seu hobby. Ele lamenta, por exemplo, o fato de, aos 51 anos, não ter mais resistência para, nos festivais internacionais de cinema, dormir apenas duas horas por noite e pular o almoço. Antes, isso era parte da sua rotina. Hoje, tem de dormir um pouco mais e se alimentar melhor. Continua, porém, não abrindo mão de ver ao menos um filme todos os dias. Isso sem falar nos livros que desde a infância devora – sua última obsessão foi o autor japonês Haruki Murakami (de “1Q84”).

Quem inoculou nele o vírus da cultura foi seu irmão Aimar Labaki, dramaturgo e autor de novelas, dois anos e meio mais velho. “O Aimar foi uma influência muito forte na juventude. Ele sempre foi apaixonado por cultura, sempre leu muito. Eu também lia muito, mas ainda descia no salão do prédio para jogar futebol de botão; ele, não”, conta.

Foi também Aimar que lhe serviu de inspiração no momento em que precisou de coragem para levar a cabo a mudança que o pôs em outro trilho da vida: o abandono da Faculdade de Medicina da USP, no terceiro ano. Labaki conta que optou pela medicina porque, na adolescência, apaixonou-se por Freud e resolveu que seria ser psiquiatra. Mas, do curso, o que parece ter ficado mais marcado em sua memória é o setor de queimados do Hospital das Clínicas. A realidade da medicina não era fácil. E o cinema, cada vez mais, ia se tornando um refúgio privilegiado para o aspirante a doutor – ao ponto de, no meio do curso, ele prestar vestibular para cinema.

Aprovado na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, chegou a levar os dois cursos paralelamente. E é aí que Aimar aparece de novo. “Ele foi fazer direito e eu, medicina. Em seguida, ele largou direito para fazer teatro. No momento da decisão de abandonar a medicina, o fato de ele já estar trabalhando com teatro foi decisivo como gesto”, recorda.

Apesar de ter sido fisgado pelo cinema, Labaki jamais se viu como cineasta. “Tive experiência em set trabalhando com publicidade, mas isso nunca me encantou. Durante a faculdade, eu pensava, no máximo, em ser roteirista. Mas quando me formei [em 1985], o mercado para roteiristas simplesmente não existia”, diz. E o jovem estudante, que já parecia ter uma queda pelo real, em vez de fazer curtas-metragens, como seus colegas, escreveu um livro sobre a rede da legalidade que transmitia os discursos de Leonel Brizola (1922-2004) nos anos imediatamente anteriores ao golpe de 1964. “1961, A Crise da Renúncia e a Solução Parlamentarista” (Brasiliense, 1986) seria o primeiro dos 12 livros que organizaria e escreveria.

Mais próximo da palavra que da imagem e do real que da ficção, Labaki foi trabalhar, aos 22 anos, como editorialista do jornal “Folha de S. Paulo”. Após dois anos no posto, foi convidado a escrever sobre cinema. Sua primeira crítica, a respeito de “Anjos do Arrabalde” (1987), de Carlos Reichenbach, saiu na “Folha” em 1987. Pelo jornal, Labaki passou a cobrir os festivais internacionais de cinema, espaço por excelência da garimpagem de filmes, cinematografias e diretores – atividade intrínseca à prática da curadoria.

A primeira experiência como produtor cultural, por sua vez, se daria em 1993, no MIS. “O É Tudo Verdade é um ato de empreendedorismo, produção e curadoria”, define, quase como se definisse a si mesmo. Labaki faz parte do grupo de profissionais do setor que faz questão de lembrar que a cultura, além dos benefícios intangíveis que traz, emprega muita gente.

“Acho que essa contribuição, que é social e econômica, é largamente subestimada, especialmente no Brasil. Só muito recentemente se começou a estudar de maneira mais séria a economia da cultura”, pondera. “Ainda há um pé atrás do pessoal da cultura em relação ao lado de negócio da atividade, mas me parece que isso tem diminuído. O que ainda existe é um preconceito da área da economia, que olha a economia da cultura como sendo pouco representativa ou amadora.”

No caso do É Tudo Verdade, um dos segredos da viabilidade financeira é a relação de fidelidade dos patrocinadores e parceiros. “Uma coisa essencial para que se mantenha uma boa relação é saber quais são os objetivos das ações de patrocínio de cada empresa. Você tem de buscar os pontos de contato entre o seu evento e a empresa que você está procurando”, diz. Orçado em R$ 3 milhões, o festival tem como característica fundamental a gratuidade – algo que se, por um lado, lhe causa alguma apreensão financeira, por outro o livra de qualquer cobrança ética em relação ao uso das leis de incentivo fiscal.

No palco

O tamanho da empresa É Tudo Verdade varia muito ao longo do ano. De maio a setembro, são apenas duas ou três pessoas no escritório; em outubro, a comissão de seleção, formada por críticos e realizadores, começa a ver os filmes; em janeiro, a engrenagem dispara e cerca de 40 pessoas passam a compor a estrutura. Durante o evento, são 85 pessoas trabalhando.

É essa equipe que, a partir de quinta-feira, estará mobilizada para que o público possa assistir à programação espalhada por quatro salas de São Paulo – Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), Cine Livraria Cultura, Espaço Itaú de Cinema e Reserva Cultural – e quatro do Rio – CCBB, Espaço Itaú Botafogo, Instituto Moreira Salles e Oi Futuro Ipanema. A variedade de temas e formas faz com que haja filmes para todos os gostos e interesses.

“Democracia em Preto e Branco”, por exemplo, recupera o processo de redemocratização do país, nos anos 1980, fechando o foco sobre a Democracia Corinthiana e o rock nacional; “Mercado de Notícias”, de Jorge Furtado, discute a mídia no Brasil contemporâneo; “Ai Weiwei – O Caso Falso” nos coloca em contato com a intimidade do artista perseguido pelo governo chinês; em “A Mentira de Armstrong”, o americano Alex Gibney coloca o próprio documentário em xeque ao mostrar o processo de feitura de um filme sobre o ciclista Lance Armstrong – o documentário, em tom laudatório, estava quase concluído quando o personagem foi banido do esporte pelo uso de doping. A edição deste ano promoverá ainda retrospectivas da brasileira Helena Solberg e do japonês Shohei Imamaura (1926-2006), duas vezes ganhador da Palma de Ouro em Cannes, mas conhecido, basicamente, pela produção ficcional.

Labaki, passada essa maratona de filmes, embarcará em outra produção – dessa vez, nos palcos. Em agosto, estreia, no Oi Futuro, no Rio, “Depois do Ensaio”, texto de Ingmar Bergman (1918-2007) traduzido por ele e por Humberto Saccomandi, editor de Internacional do Valor, e produzido pela atriz Mônica Guimarães, namorada de Labaki e produtora do É Tudo Verdade. Afinal de contas, nem só de filmes e realidade se vive.

Site: www.etudoverdade.com.br

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Ana Paula Sousa, para o Valor Econômico