Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

‘Velhice não é questão de idade; é falta de entusiasmo pela vida’

Uma feliz coincidência une os mundos das artes e do direito. De um lado, o Estatuto do Idoso – Leinº 10.741 completou, em janeiro, uma década em vigor. De outro, a premiada atriz, escritora, roteirista e produtora teatral Maitê Proença, de 55 anos, traz em seu último livro, É difícil ser cabra na Etiópia, uma provocativa abordagem da velhice. A obra é multiautoral – pois reúne, além dos textos assinados por Maitê, reflexões postadas em seu blog por grandes autores e anônimos.

Nesta entrevista exclusiva concedida ao OI, Maitê Proença compartilha suas ideias e afirma que nossa sociedade precisa superar a visão estigmatizada que tem da velhice. A atriz leva essa perspectiva também para os palcos, com sua peça À beira do abismo me cresceram asas, que volta em temporada pelos palcos do país depois do grande sucesso de público e de critica no ano passado.

“Fico comovida ao ver a Bibi Ferreira com um vigor e uma atitude admiráveis”

Qual é sua perspectiva sobre o que é a velhice ou o significado de envelhecer?

Maitê Proença – Sua pergunta faz vir à minha mente pessoas extremamente inspiradoras, como a atriz Fernanda Montenegro, o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso e o cantor e compositor Chico Buarque. Todos eles já passaram dos 60 anos, idade que a legislação brasileira estabelece para uma pessoa ser reconhecida como “idosa”. Eu, particularmente, não gosto dessa expressão, prefiro velha ou velho. Essas pessoas a quem eu me referi são velhas, mas nem por isso deixaram de fazer as coisas maravilhosas que sempre fizeram. Fico comovida ao ver a atriz Bibi Ferreira, aos 91 anos, com um vigor e uma atitude admiráveis, que são fruto da pessoa curiosa em relação à vida que ela sempre foi. A velhice não muda ou faz morrer o que fomos de melhor em outras idades ou fases da vida. Quem sempre teve muito interesse pelo outro, gosta da partilhar suas experiências e não se isola, continuará assim quando ficar velho. Tem uma fala na peça que explicita isto, dita durante a conversa das duas únicas personagens, Terezinha e Valdina, amigas que vivem no mesmo asilo: “Tem esses aí que ficam de chinelão na frente da televisão, assistindo à vida dos outros, achando que a alegria é uma grande injustiça mal distribuída.” Venhamos e convenhamos, essa postura pode ser encontrado em um jovem, adulto ou velho. Evidentemente que as pessoas que tratam a vida com entusiasmo saberão envelhecer e não serão dessa categoria de gente desinteressada da vida. Mais: quando você encontra um desses velhos cheios de atitude, você não pensa logo de cara: “Ah, essa velha ou velho…” Esta é quinta coisa que você vai perceber, que a pessoa já tem uma idade avançada. Antes, você vai se pegar pensando: “Nossa, que vigor, que entusiasmo pela vida.” Portanto, a idade do outro vem à mente das pessoas, mas não terá qualquer importância se aquele “velho” ou “velha” exalar um genuíno envolvimento com a vida. Acredito que esse entusiasmo é a palavra-chave quando o objetivo é fazer essa reflexão sobre o que é velhice e quem é de fato velho.

“A morte é um balanço de nossa existência”

Então, na sua opinião, a velhice é sinônimo de ausência de uma atitude interessada pela vida?

M.P. – Infelizmente na nossa sociedade e em muitas outras partes do mundo ainda se associa a velhice à aparência física e a morte. Isto não tem sentido. Então um bebê, que tenha tido um único minuto de vida e que logo em seguida morreu, virou, em questão de instantes, um velho só porque a morte o alcançou? Lógico que não, mas fazemos essa associação irracional. Estamos em um momento de nossa civilização em que é bom passar a enxergarmos as pessoas, e a vida, de uma outra maneira. Primeiro, porque a ciência está mudando nossa realidade de decrepitude e decadência. Segundo, porque estamos vivendo muito mais. Aliás, não escrevi minha peça para falar de decadência e decrepitude.

Essa foi sua escolha, não fazer uso de caricaturas, tão comuns em filmes e outras peças de teatro?

M.P. – Eu escrevi um roteiro para mostrar que pessoas com muita idade não só podem como mantêm muita curiosidade pela vida. As duas personagens são octogenárias e têm muitas historias, ideias e experiências para contar. Elas pensaram muito ao longo de suas vidas e foram tirando suas conclusões. Aprenderam que o humor é a única maneira de evitar a auto-piedade, as lamúrias e todo tipo de pieguice. São essas as velhas que eu coloquei em cena. Todas as noites, a plateia fica cheia de espectadores de todas as idades. O público entendeu o recado. Mesmo os mais jovens se identificam com as nossas velhas, pois reconhecem que o “abismo” que está no título da peça não tem a ver só com a experiência de chegar ao final da vida, pois a “morte”, simbólica ou real, sempre nos traz, não importa nossa idade, a oportunidade de fazermos um balanço de nossa existência. Se nesse processo de reflexão nos damos “asas”, ou seja, encaramos com mais leveza um momento de crise ou de fechamento de um ciclo, sejamos adolescentes, adultos ou velhos, será sempre mais fácil transpô-lo.

“Em meio a falas leves, o texto cutuca o espectador”

Nesse aspecto sua peça tem o mérito de romper um forte preconceito, mostrando que as diferentes gerações têm mais em comum do que se dão conta.

M.P. – Exatamente. Sonhos, medos e até mesmo as mais sombrias fantasias ou abismos profundos nos acompanham da mais tenra infância a mais avançada velhice. Nosso universo psicológico é complexo demais e inquietações nos perseguem em todas as idades. Em fases como a puberdade, a gestação, a menopausa e a andropausa pode haver muito sofrimento por causa das mudanças no corpo, que podem despertar muito inconformismo e confusão emocional. O fato é que todas as idades têm seus momentos secretos, soturnos e até mesmo macabros. Na adolescência, por exemplo, há meninas que se acham gordas pesando apenas 37 quilos. O fato é que achamos nosso corpo estranhíssimo nossa vida inteira! Naturalmente, o velho também acha seu corpo cheio de rugas estranhíssimo. Isso me faz lembrar um filme que me marcou muito, Cría Cuervos, do espanhol Carlos Saura. É uma obra-prima, pois retrata três meninas que ficam órfãs de pai e mãe ainda na infância. Em um primeiro momento, a história causa espanto e depois comove profundamente os espectadores, pois joga luz sobre o mundo desses pequeninos, que sempre acreditamos serem tão inocentes e inseguros. A peça também tem o objetivo de provocar certo estranhamento inicial e levar quem foi ao teatro a ter outros olhos sobre a velhice que está no outro e a que vive dentro da gente. O fato é que precisamos repensar tudo o que compreendemos sobre esse período tão estigmatizado da vida humana. Estigmatizamos a velhice com determinados elementos que são pertinentes a todas as idades.

Os meios de comunicação ajudam a romper esses estigmas?

M.P. – Em geral tudo ainda é abordado de forma muito superficial e com grandes clichês. É preciso ser seletivo para chegar às poucas pessoas que hoje pensam fora de “caixinhas”, sobre esse e tantos outros temas. Se você quer entender de verdade as coisas importantes da vida, é melhor que tenha sempre muitas perguntas. Receitas “mágicas” e visões generalistas não servem. Por vivermos em um mundo em evolução rápida, é melhor também manter em aberto as próprias perguntas, pois todos os dias topamos com novas respostas, que precisam ser avaliadas com discernimento. As nossas percepções não podem permanecer “congeladas” ou estáticas. Quando temos a capacidade de alterá-las, isso faz as coisas ficarem mais claras e ganharem um sentido real em nossas vidas. Ficar mais sábio com o passar da vida exige de cada um de nós essa postura ao mesmo tempo aberta e responsável. Por isso que, na peça, as visões de mundo das duas velhas são muito distintas e elas não têm respostas prontas justamente para que o espectador saia do teatro com muitas perguntas e reflexões misturadas às suas experiências. O roteiro cutuca com delicadeza, pois não dá para abordar a velhice com um “tapa na cara”. A velhice é um assunto que ainda causa muitos temores e se é abordado de forma brusca, as pessoas se mantêm em suas conchas. Por isso optamos por elaborar um texto alegre, que em meio a falas leves lança conceitos que cutucam o espectador.

“Agora sobra tempo para investir no enigma da existência humana”

Você viaja muito ao exterior. O que observa lá fora no que diz respeito aos mais velhos?

M.P. – Vou muito para o Oriente. Lá,nas primeiras horas do dia,vemos nas praças públicas uma grande população fazendo atividades como o tai chi chuan. Gente de todas as idades,têm a cultura de fazer exercícios durante todos os dias de suas vidas. Os velhos pegam suas pernas magras e as jogam lá para o alto. Em sua expressão não há esforço ou sofrimento, pois ele faz aquilo desde a infância. Hoje ele tem menos massa muscular, mas seu corpo mantém a agilidade e a flexibilidade. Os velhos também conversam muito entre si e com os moços. Ninguém fica em casa reclamando da vida. Essas pessoas que eu chamo de velhos interessantes também são a fonte de informação de toda a família, que cuida, ama e os escuta com genuíno interesse. Recentemente estive na Alemanha e chamou minha atenção o grande número de cadeirantes e outras pessoas com deficiência que vi pelas ruas. Deduzi que a Alemanha, por algum motivo que eu desconhecia, tinha mais pessoas deficientes que outros países que visitei, como Espanha e Itália. Para minha surpresa, um amigo meu que mora lá desvendou o mistério. Ele me disse: “Não é que temos mais pessoas nessa condição, mas aqui todas elas, não importa a região onde vivem, podem locomover-se livremente pelas ruas e prédios públicos e privados. Todas as cidades estão preparadas para atender às suas necessidades especiais, sem que precisem de outra pessoa para, por exemplo, empurrar suas cadeiras de rodas, O respeito do Estado ao cidadão é 100%. No Brasil, quase sempre é um transtorno para qualquer um acessar o espaço público. Temos muito que avançar. Há ainda sociedades que visitei em que pessoas mais jovens pouco se tocam, mas os velhos são abraçados por todos. Há muito carinho, cuidado e respeito por eles.

Na sua opinião, qual é o maior desafio que a velhice representa para o Brasil?

M.P. – O problema maior é de ordem cultural. Em nosso país vivemos como se acreditássemos em uma falsa e antiga história, a de que aos sessenta anos temos de colocar o pijama porque a vida está para acabar. Isso está arraigado no nosso inconsciente coletivo, precisamos mudar essa mentalidade urgente. Aposento-me hoje na faixa dos 60 e tenho a possibilidade de viver até os 100 anos. Temos pela frente praticamente uma nova vida, que poderia ser aproveitada para nos espiritualizarmos, não no sentido religioso, mas de entrar em contato com tudo aquilo que justifica o estar aqui, que enobrece a vida e nossa caminhada. Agora que não é preciso mais gastar tanta energia com a sedução, com a carreira, sobra tempo para investir no enigma da existência humana. Que maravilha! Quando ficamos velhos entramos na melhor fase de nossas vidas. É a oportunidade que temos para depurar o olhar e a nossa sensibilidade. Se isto faz a pessoa feliz, que ela estique a pele aqui ou ali, mas o resultado será sempre o mesmo: apesar de “esticada”, ela continuará a ser uma velha ou um velho! (risos).

“O uma vida digna para todos”

O problema é que as pessoas querem sempre parecer mais jovens do que realmente são.

M.P. – O importante é não se perder no tempo, ora tentado se passar por alguém de vinte e poucos anos ou gastando horas a fio no divã do analista só porque não consegue se adaptar a essa outra fase da vida, talvez porque ainda esteja dando mais importância aos preconceitos e pré-conceitos ultrapassados de nossa sociedade. Não se deixar paralisar e prosseguir com firmeza é preciso. Só neste contexto acho cabível usar a expressão “melhor idade”, pois você se determina a fazer dessa fase de sua jornada seu melhor momento de vida. A velhice não nos tira a condição de borboleta, fazendo-nos regredir para a fase de casulo. Uso essa figura de linguagem porque era como eu me sentia quando entrei na puberdade. Gostava de jogar bola com os garotos, mas não podia mais “matar” uma bola no peito, pois essa região do meu corpo estava se desenvolvendo. Eu me achava horrorosa e aquela transformação que estava acontecendo no meu corpo eu sabia que não tinha como parar. Esse mal-estar pode nos acompanhar a vida inteira. A velhice nos traz a oportunidade de escolher não sermos mais refém desses bloqueios, que perseguem a maioria das pessoas a vida toda.

O sucesso de sua peça parece indicar que o teatro pode ser um bom coadjuvante do Estatuto do Idoso, que neste mês completa dez anos de promulgação. Como vê essa aproximação entre a arte e o direito?

M.P. – O teatro provoca e comove, a lei sozinha não tem esse poder ou objetivo. Sem contar que no palco podemos apresentar as situações como elas são, mas permeá-las de humor e outros elementos cênicos encantadores. Para se ter uma ideia, ao final do espetáculo muitos espectadores que vêm falar com a Clarisse e eu relatam que tinham um certo medo de ver a peça porque achavam que se sentiriam deprimidos. Aí perguntamos: e agora, como você se sente? As pessoas dizem que aquele lugar dentro delas, que estava represado, agora está cheio de emoções e livre para ser mexido. Acredito que o teatro é o melhor lugar para falar com as pessoas sobre temas que as incomoda ou que precisam de grandes avanços. No palco acontece toda uma poética visual e sem que o ator pronuncie uma única palavra, o público consegue entender todo um contexto. O teatro é a única arte que só acontece por causa dessa troca e interação entre quem está no palco e a plateia. É o lugar onde fantasia e realidade podem ser tratados juntos, daí também ser um espaço político, como agora as ruas voltaram a ser, para trazer reflexões importantes, fazendo com que cada espectador pense e sinta, na sua própria pele e também se colocando no lugar do outro, o que é o respeito, uma vida digna para todos.

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Simone Silva Jardim é jornalista