Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ao povo, sua própria voz

“É chamado de espírito livre aquele que pensa de modo diverso do que se esperaria com base em sua procedência, em seu meio, sua posição e função, ou com base nas opiniões que predominam em seu tempo. Ele é a exceção, os espíritos cativos são a regra? estes lhes objetam que seus princípios livres têm origem na ânsia de ser notado ou até mesmo levam à interferência de atos livres, isto é, irreconciliáveis com a moral cativa” (Trecho de Humano, demasiado humano (p.157), de Friedrich Nietzsche)

Os espíritos livres sobre os quais escreve Nietzsche não se encontram em todos os lugares. Tornar­se um, com sentimento próprio de mundo, é quase uma revolução interna. São mudanças incômodas que incitam um passado recheado de cordas onde se entendem certas morais que beiram grandes conservadorismos. No mundo, esses grandes nós têm laços feitos que se aderem a muitos lados. São cursos longos de poder, microfísicos, como bem pontuou Foucault. A mídia está em boa parte dessas formas, lapidando amarras que se estabeleceram dentro de um sistema em que exercem domínio e trazem à tona interesses próprios.

Os atuais protestos e a história recente da Venezuela mostram muito desse jornalismo voltado para as grandes corporações. São profissionais de todo o mundo que tentam, diariamente, passar aos seus leitores, telespectadores, ouvintes e internautas o que acontece no país. Sem sucesso. Devem ser repórteres, pois, que não saem dos prédios em que estão hospedados, que cultivam a rotina de um jornalismo feito do escritório. Sem possibilidades, portanto. Sem capacidade para conhecer o que vem do povo, em seu todo, desde o centro até as periferias das cidades. Essa omissão contribui para um desconhecimento do que realmente faz com que um número realmente considerável de venezuelanos seja livre para acreditar no chavismo, mesmo após a morte de Hugo Chávez.

O jogo midiático não é simples

Como a maioria dos países sul­americanos, a Venezuela vem de uma série de contradições que englobam problemas sociais e políticos em sua formação. Não é de hoje que um conflito político acontece no país. Também não é de agora que o mundo e suas potenciais coberturas constroem roteiros sobre o que se vive ali. As oposições às políticas de esquerda cultivadas o bolivarianismo e em sua continuidade com Chávez sempre incomodaram economias e práticas conservadoras. Não se trata, é claro, de uma guerra fria que se aplica à Venezuela e à trajetória do chavismo contra o resto do planeta. É mais um jogo econômico em que forças de estruturas empresariais entram num embate sobre público e privado. Isso ficou mais evidente quando, em 2002, o empresário Pedro Carmona tomou o poder de Chávez por menos de 48 horas. Apenas os governos dos EUA, de George W. Bush, e da Espanha, de José María Aznar, junto ao Fundo Monetário Internacional, reconheceram a legitimidade de Pedro. O fato de que a Venezuela é dona de mais de 300 bilhões de barris de petróleo também leva a alturas o interesse de muitos. Ali, onde as empresas poderiam ter um espaço muito maior de domínio, a escolha de uma tática de governo para o povo foi superior.

Chávez trouxe inúmeros avanços ao povo venezuelano. Desde 2005, não existem analfabetos no país, segundo dados da Unesco, que também afirma ter a Venezuela um dos maiores índices de matrículas universitárias do mundo. Infelizmente, leitores de muitos países que acompanham noticiários não sabem de tudo isso. Não sabem, inclusive, que a oposição ao governo tem seu espaço nas diversas conjunturas locais, inclusive na mídia. O influente site eluniversal.com, o el­nacional.com, o talcualdigital.com, que nasceu para se opor ao chavismo, o econômico elmundo.com.ve e o ultimasnoticias.com.ve são alguns exemplos. Os dois canais mais vistos da TV aberta são privados. Os canais estatais não superam, somados, 10% da audiência. A TV paga é muito mais acessível que no Brasil e contém inúmeros canais oposicionistas. No rádio, a maior parte das emissoras privadas é abertamente de oposição, em contraposição às emissoras públicas e, principalmente, comunitárias, que têm muito espaço na Venezuela. O jogo midiático não é tão simples quanto se pensa. Infelizmente, grande parte da mídia internacional não conta essa história.

Pensamento livre

O chavismo foi um dos primeiros momentos de ruptura com a política que os Estados Unidos exercem econômica, política e militarmente sobre a América Latina. As adversidades de se governar para o povo, com ideais que se opõem à grande parte do capital que rege o mundo, trazem em troca um olhar para as bases, investimentos na saúde, na educação e na formação de pessoas. Se isso neutraliza a continuidade de uma política de exclusão e de produção de miséria, mesmo que em pequenos ângulos, é uma faca afiada às empresas que exercem controle político em diversos países.

Essas mesmas empresas têm capital nas grandes mídias e se impõem de maneira a continuar um ciclo, formando pessoas que naturalmente rechacem políticas como a chavista, políticas que não contribuem com a lógica da imprensa hegemônica. Nesse ciclo, se inserem os mais diversos leitores das mais distintas nacionalidades, que acessam a essas mídias o tempo todo, sem saber por que, nas ruas da Venezuela, só a oposição tem a palavra e ganha corpo na grande imprensa.

Um microfone para quem está nos becos venezuelanos poderia desmistificar o que querem apagar do chavismo. Dar voz a esses espíritos livres, dos quais não se espera um pensamento diferenciado, é mostrar o quanto podem ser cativos aos olhares do mundo. Tem quem o faça.

Mídias populares e alternativas existem para cobrir o que a grande imprensa não cobre e contar histórias que ninguém quer contar. Não se trata de defender a intenção socialista como uma possibilidade para o mundo, mas de analisar atitudes governamentais que deram a um povo novas chances de construir um pensamento livre sobre seus próprios contextos, na tentativa de minimizar meritocracias e exclusões precedentes.

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Francielly Baliana é estudante de Jornalismo