Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Imprensa ou imprença?

 

Congreço vai começar
semana com pauta trancada.
Site MS Notícias em 8/7/2005

À véspera de outra Copa, a de 1974, o gordo foca que se candidatava a repórter do Jornal da Tarde chegou de um treino da Portuguesa de Desportos e, entre suadíssimo e ofegante, entregou duas ou três laudas escritas(?) num raro dialeto do Condado Portucalense. Pois ainda assim foi possível ao experiente e perseverante copidesque descobrir que um dos craques da equipe sofrera grave estiramento “na coucha”.

Foi, sem dúvida, a mais ousada forma de alguém confundir X com CH, principalmente por causa da cumplicidade forçada desse sequestrado U, vítima inocente mas que denunciou um analfabetismo certamente irreversível. Porque a ignorância é, antes de tudo, uma vocação, pelo menos no parecer deste veterano manipulador de textos alheios, hoje com 52 anos de profissão.

Sabe-se que o ignorante não conhece; o burro não entende. Porém, por mais insidiosas e pertinazes que sejam essas, digamos, deficiências, elas não impedem ninguém de ser repórter, redator ou apresentador de programas de rádio e TV, a julgar pelo que conseguimos ler ou escutar por este país afora. O inesquecível foca de 1974 talvez tenha feito carreira na imprensa…

Tropeços como aquele estão, é verdade, folclorizados e provocam mais regozijo que indignação. Impossível não rir diante de um título tão perverso como Surdo-mudo morre capado na Bahia; ou este, intelectualíssimo, Filmes ruins podem ser bons. Em meu Jornal da ImprenÇa (assim mesmo com Ç), que nasceu na revista Imprensa em 1987 como “Perdão, Leitores”, tem sido tão vasto o florilégio que até lancei em 1997 um volume com o mesmo título da coluna, a qual passou a ser publicada no Portal Comunique-se a partir de 2002.

O livro, que comemorava os dez primeiros anos da coluna, não chegou a ser, confesso, um tsunami editorial, mas conquistou boa quantiade leitores – e assim grafo em homenagem aos jovens colegas que não dão a mínima para os fricotes do português castiço ou apenas civilizado. Talvez não tenha mesmo importância saber que existe alguma diferença entre os substantivos quantiae quantidade, como apregoam os repórteres da TV.

Meu fiel assistente Janistraquis de Azevedo Varejão, também septuagenário, quase conterrâneo do ex-presidente Lula, costuma confundir “marquise” com “quermesse”, mas ficou muito mais esperto depois de escrever xiste em lugar de chiste. Recebeu uma virtual tonelada de tomates e ovos podres e nunca mais dispensou o corretor e o dicionário Houaiss, em companhia dos quais almoça, janta, toma banho e dorme com a consciência leve de uma criança.

Pedi a esse meu abnegado colaborador que escolhesse, entre as de sua preferência, uma notinha já publicada em nosso Jornal da ImprenÇae ele, traumatizado como ministro que recebe elogios da presidenta, escolheu esta, não tão antiga (é de 2011), mas bem representativa do nosso trabalho:

“Sob a manchete de página Irmandade de Misericórdia demite 142 funcionários, o Correio Popular de Campinas pespegou o seguinte ‘olho’ em linha tão estreita como aqueles riscos de ‘cruzamento’ no talonário:

Provedor diz que corte não
coloca em cheque qualidade
do atendimento.

O absurdo (a palavra cheque é repetida algumas vezes no corpo da matéria) foi enviado pelo considerado Jorge Ribeiro Neto, editor do Jornalzen, que circula em Campinas e região, o qual fez o seguinte comentário:

Isso é o que eu chamaria de ‘cadeia da incompetência’; erra o repórter (no texto), erra o editor (na linha fina) e erra o revisor (se houver…).

Estou colocando em xeque a competência dos redatores do Correio Popular.”

(O parecer acima bem poderia ser dirigido a esta revista, que estampou na capa de seu último número a cavilosa expressão.)

Uma confidência, contudo, precisa ser feita: nos seus 27 anos “de vida folgada e milagrosa”, para lembrar o epitáfio de Bocage, um de nossos inspiradores, o Jornal da ImprenÇa jamais isentou ou favoreceu os dignos representantes da mídia. E nem poderia agir dessa forma, pois são os leitores/ouvintes/telespectadores que nos abastecem. Falta-nos coragem para exercer a censura, embora muitas vezes um bom amigo e companheiro de trabalho seja vítima da impiedade de tantos.

Aprendemos no decorrer dos anos que o publicado nem sempre saiu da cabeça do humilde repórter, e, por tal razão, é imperioso omitir o nome desses inocentes. Afinal, na citada “cadeia da incompetência”, se erra o repórter erram também os chefes, os quais costumam pairar acima de qualquer dúvida. Essa é uma conclusão obrigatória, se levarmos em conta os tropeções nos títulos e chamadas de capa, todos, evidentemente, perpetrados por editores, com a colaboração até de alguns diretores mais intrometidos. Eis alguns exemplos notáveis e mais ou menos recentes:

1. A considerada Beatriz Portinari, jornalista freelance em São Paulo, envia de seu escritório na região da Av. Paulista esta inesquecível obra-prima publicada há algum tempo na Ilustrada da Folha e que estava muito bem guardada nos arquivos da moça:

Dramaturgo morto aos 23,
alemão Georg Büchner tem
duas pessas em cartaz em SP

Ao lembrar que no Jornal da ImprenÇa os crimes contra o idioma não prescrevem jamais, meu assistente aplaude a ousadia: “Vamos e venhamos; pessa é muito mais bonito do que peça, né não?”

2. Manchete na primeira página de Zero Hora:

Ao vivo: Empresa da zona
sul põe ônibus nas ruas.

Todavia, o fantasmagórico não está nesse deslocadíssimo “Ao vivo”, e sim logo abaixo, na linha apelidada de “olho” por uns e “bigode” por outros:

Ouve bate-boca e troca
de acusações entre os rodoviários.

Ouve!!! O responsável por tanto desrespeito à língua deve ter sido um experiente redator ainda não apresentado ao verbo haver; pode não constituir motivo para demissão, mas reforça a tese deste veterano segundo o qual, como já foi dito, a ignorância resiste a tudo, porque é dolorosamente vocacional.

O tropeço do chefe é mais grave, pois ele, por inexplicável arrogância, nunca é assaltado pela dúvida, “desconforto” tão útil para quem vive de escrever. O sujeito pega o trabalho do repórter, enfia algumas dispensáveis vírgulas, corta acentos para cumprir o tal (e inútil) acordo ortográfico e muda para chance o que é, em verdade, risco. O “top” da cadeia de produção de uma reportagem não tem a menor dúvida de que está certo e sempre ignora o indispensável axioma: a certeza é inimiga da esperteza. Foi por causa desses episódios editoriais que resolvemos preservar o repórter; não deve sofrer execração quem assinou a matéria que os editores botaram a perder.

É desse modo que se abraçam como irmãs (verdadeiramente, são primas), a ignorância e a burrice. Ora, o presidente da empresa X tem toda “a chance” do mundo de levar o empreendimento à falência ou “corre o risco” de tanger a boiada para o brejo? Confundir chancecom riscoé mais um crime hediondo, tal e qual a repetição ad nauseamda expressão “por conta”, idiotismo insuportável em que se transformou “por causa”.

Tão sufocante é o enunciado desse autêntico coprólito, se me permitem o emprego da palavra, que “por conta” tem sido plantada e colhida em qualquer lugar, até no campo onde há regato e/ou mato ou também capões. Por exemplo, o telespectador se liga no Globo Rural, ainda o melhor programa da TV brasileira, e arranha a manhã de domingo por causa da expressão ruminada entre apresentadores, repórteres e entrevistados, sejam fazendeiros ou peões. Influenciado pelo repórter “da cidade”, o qual dispara um “por conta” atrás do outro, o humilde lavrador assenta a enxada e troca o velho “prucausa” pelo mais antenado e elegante “pruconta”.

(Noutros programas de TV mais destemidos, o substantivo ausência tem sido substituído por uma inacreditável não presença. Nestes tempos tão desvairados, quem escutou jamais esqueceu.)

Há décadas, a imprensa dita moderna vive a criar penduricalhos de linguagem, mais precisamente desde que abnegados trouxeram para o Brasil as técnicas de jornalismo americanas e cuja bíblia foi Introdução ao Jornalismo, de F. Fraser Bond. Ele, que era professor da New York University, não recomendou nenhum comportamento radical no texto da imprensa, mas aqui foram criados, por entusiasmo modernista inspirado pelo professor americano, inúmeros e despiciendos preconceitos, como a pena de degredo imposta ao ponto de exclamação, convém recordar.

Para mostrar que estava situado muitos himalaias acima dos pasquins viciados no escândalo de cada dia, o reformado Jornal do Brasil dos anos 1950/1960 simplesmente despachou para os subúrbios da Central o indispensável sinal gráfico que escancara o espanto.

Em texto sobre grave acidente aéreo, a caixa-preta, segundo o asseado jornal, guardava este derradeiro diálogo entre piloto e copiloto:

– Acho que estamos perdendo altura.

– Por Deus, é mesmo.

– Vamos cair, vamos cair.

……………………………………………………………..

A linha pontilhada substituía, com toda certeza, a mais comum de todas as exclamações que denunciam o desespero: “Puta merda!!!”

O hoje desvalido jornal, que se esgueira pelos desvãos da internet, foi castigado por alguma praga e teve o virginal comportamento comprometido no verão dos anos 1990. Em minuciosa e notável reportagem à altura da tragédia das enchentes, escorregou na obscenidade ao elogiar os que haviam doado aos flagelados um carregamento de “colhões”. Janistraquis comentou que a “não presença” de um simples C nunca fora tão devastadora numa cobertura jornalística.

Todavia, os que trabalharam e pesquisaram durante alguns anos no velho JBnão foram assaltados por grande surpresa; a memória me leva àqueles recortes de matérias a respeito de Lampião, o Rei do Cangaço, guardados na pasta de “outros utensílios”, como velas, lâmpadas, lanternas, candeeiros… Noutra pasta, de informações sobre estádios de futebol, alguém encontrou um envelope com uma anotação deverasmente inacreditável: estádio de sítio! Estas, chamemos de ocorrências, são relembradas aqui e ali como pérolas do anedotário das redações, mas, para nossa tristeza, realmente aconteceram.

Pouco antes dessa época, e estamos a falar de uma história de mais de meio século, os focas aprendemos que bastaria evitar o gerúndio no início do lead (o parágrafo de abertura de qualquer matéria) para o texto fluir como os exemplos escolhidos pelo Mestre Fraser Bond, “Fumando espero”, “Esperando Godot”, “Matando a pau”, coisas assim jamais deveriam ser escritas por profissionais de boa formação. O que não nos ensinaram: é possível enterrar tudo isso, juntar ao féretro os pontos de exclamação à moda do Jornal do Brasil, e, mesmo assim, o texto sair uma enorme bunda, “palavrão” também condenado naquele “jornalismo moderno” e obrigatoriamente asséptico sabe deus por quê.

Eram, aprendemos depressa, inocentes e cretinas proibições, como essa de amaldiçoar o redator que apelava para a facilidade do gerúndio, mesmo que a partir dali pudesse florescer uma obra-prima; em contrapartida, tolerava-se que alguém desprovido de qualquer talento iniciasse dessa forma um texto tenebroso, literalmente de cabo a rabo: “Vira e mexe…” Até hoje, de vez em quando tal arremedo nos espanta, qualquer que seja a mídia. Segundo o sempre inflexível Janistraquis, a expressão “vira e mexe” lembra assuntos pra lá de licenciosos!

O que falta hoje nas redações faltava menos ontem, posso dizer sem nenhum saudosismo: criatividade. Não essa besteira de iniciar os textos com letra minúscula, como imaginam muitos, ou perpetrar um título assim:Há medo de pânico no morro. O considerado Luiz Fernando Perez, jornalista dos melhores da praça, velho amigo e companheiro no Correio de Minasde 1962, costuma enviar ao Jornal da ImprenÇaboas observações de seu QG na Praça da Savassi, em Belo Horizonte. Uma das mais recentes foi a seguinte:

Até parece um complô contra a língua. Num mesmo dia, para divulgar o mesmo assunto, os editores dos portais de O Globo, Estadão e Folha malandraram nas manchetes sobre a decretação da prisão do acusado de matar, com uma bomba, o cinegrafista Santiago Andrade:

VIOLÊNCIA EM MANIFESTAÇÃO

Justiça decreta prisão
de suspeito de acender rojão
que matou cinegrafista

 

Justiça decreta prisão
temporária de suspeito
de acionar rojão no Rio

 

O homem foi identificado
como Caio Silva de Souza

 

MANIFESTAÇÃO NO RIO

Justiça decreta prisão
de suspeito de acender rojão
que matou cinegrafista

Acender e acionar foram os verbos preferidos, além do descomprometido substantivo “suspeito” (substituindo acusado), em vez de disparar, lançar, explodir ou detonar o rojão.

É o mesmo que escrever “suspeito de puxar o gatilho do revólver que matou cinegrafista”, se a morte fosse a tiro. Dá saudades do capricho de editores mais familiarizados com o rico vocabulário do português.

É, vê-se, tão impressionante a escassez de recursos que se torna difícil a vida profissional de todos, sejam veteranos ou recém-formados. Como pode sobressair no concorrido mercado jornalístico um desprevenido candidato ao Prêmio Esso? Sabemos todos que a ausência (ou “não presença”?) de leitura capina a trilha que leva ao abismo. Quem não lê, não pensa; quem não pensa, não escreve, eis a tão difundida verdade. Quer dizer: escreve, sim, porém “pessimamente mal”, como já escutei por aí. A esquisita expressão serve para denunciar quem se abriga sob o comportamento politicamente correto, esse filho bastardo da falta de bom senso.

Pouquíssimos ainda têm alguma opinião, pois ninguém mais “faz” e sim “teria feito”; bandidos viraram “jovens”, como se fossem iguais a nossos filhos ou netos. Até nas transmissões de futebol o medo de opinar paralisa narradores e comentaristas, para os quais o juiz “entendeu” que foi pênalti. Aos profissionais falta coragem para dizer o que de verdade se passa no gramado, enquanto os zagueiros não se antecipam nem se concentram nas jogadas; apenas antecipam e concentram, pois o reflexivo é sempre chutado para fora do estádio.

É assim mesmo: quem não lê não pensa e as mídias seguem a concorrer entre si. Os tropeços cada vez mais comuns acusam a falta do imprescindível verniz, e por tal razão é sempre possível reencontrarmos a qualquer momento um título tão temerário como o de um Estadão de fevereiro de 1995:

Vinagre e papel higiênico
sobem até 20%

Lembro-me de que meu assistente ficou encantado com a maneira poética de se unir o início e o fim de uma boa refeição: “O bom gosto é patente e só cabeças poluídas ou fanáticos mestres de obras iriam ler o título e se lembrar de lixa grossa e aguarrás”.

Impossível saber se no país onde nasceu o jornalismo moderno de Fraser Bond algum redator produziu algo parecido com as atrocidades encontradas na imprensa brasileira. Janistraquis garante que não, pois o inglês é idioma mais simples e, ainda por cima, não tem acentos para atenazar. A execrável reforma ortográfica, que cassou o trema das lingüiças, seria uma tentativa de simplificar a língua portuguesa se não tivesse conseguido apenas nos confundir e tornar impossível uma das principais obrigações da mídia: desasnar o sempre desprevenido leitor.

Muito antes dos equívocos até acadêmicos deste país, o autor de Introdução ao Jornalismo enumerava os deveres de todos nós, pois em qualquer lugar do mundo, até no Brasil, a imprensa precisa ser independente, imparcial, exata, honesta, responsável e decente. E são quatro os objetivos fundamentais, segundo o professor: informar, interpretar, orientar e entreter. Há, contudo, certa prolixidade na lição, porque um experiente copidesque do Jornal do Brasil dos anos 1960 (e lembro-me do maranhense Joaquim Campelo, amigo de infância de Sarney) reduziria os seis deveres a apenas um: honestidade.

Os demais são paetês e miçangas do estilo, como balangandã da ignorância é a pronúncia de certas palavras, cujo assassínio é anterior ao Jornal Falado Tupi: gratuíto, fluído, circuíto, essas coisas que doem no peito e fazem chorar. E paulistas e paulistanos ainda acrescentam mais uma excrescência aos neoplasmas do idioma: daqui dois dias, repetem no rádio e na TV, nas ruas e nos bares. Intelectuais até respeitáveis desabam nesse revoltante linguajar de dupla caipira que fulmina a indefesa preposição.

E o que dizer das emissoras de TV cujos apresentadores e repórteres partiram para a formação de quadrilhas cujo único objetivo é eliminar os dias de ontem, hoje, amanhã e sempre? Nasceram as horripilantes expressões “nesta segunda”, conhecida como hoje ou ontem; “nesta terça”, que antigamente se chamava anteontem ou depois de amanhã. E o passar do tempo segue carnavalescamente por aí afora.

Jornalistas com mais de meio século de catequese, somente a teimosia nos impede de entregar os pontos, pendurar as chuteiras, raspar o bigode. Corremos o risco, sem a menor chance de recuperação, de nos transformarmos em velhos chatos nos quais jamais vingará o espírito inovador do Facebook. Meu fiel assistente tem gravada na desfalcada memória pré-demencial os detalhes da primeira punição que sofreu pelo crime de tentar libertar os leitores do lodaçal da ignorância com o audacioso empurrão da imprensa.

Aconteceu quando ele exercia o cargo de chefe de redação de O Aboio do Matuto, semanário do sertão pernambucano, e resolveu publicar na primeira página este inadiável e fundamental Erramos:

Diferentemente do que foi
publicado no artigo do Doutor
Coelho, intitulado “Vultos da Pátria”,
Joaquim José da Silva Xavier
não era o Duque de Caxias.

O Doutor Coelho, Antônio Hermenegildo Coelho, era apenas o dono do jornal.

******

Moacir Japiassu é paraibano, 71 anos de idade (nove dias mais velho do que Harrison Ford) e 52 de profissão. O jornalista trabalhou no Correio de Minas, Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, entre outros. O mais recente de seus livros é a seleção de crônicas Carta a uma Paixão Definitiva (Nova Alexandria, 2007)