Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A superburguesia

A economia ortodoxa, ou neoclássica, sustenta que maior capital implica maior crescimento econômico, mas o recente livro Capital no Século XXI (ainda não lançado no Brasil), do economista Thomas Piketty, abre uma nova discussão sobre o fator, de acordo com o economista prêmio Nobel Paul Krugman. Piketty descreve o enriquecimento absurdo da camada 1% mais rica da sociedade americana, britânica e francesa nas últimas décadas concluindo que ele se dá retroagindo seu crescimento econômico e a própria sociedade, que estaria assim, inclusive, retomando padrões de divisão de classe pré-industriais. No Brasil, onde a camada dos 10% mais ricos nunca deixou de concentrar a riqueza do país, a tese sugere o por que de nosso nunca superado subdesenvolvimento. Para Piketty, uma das formas inadiáveis de travar o fenômeno seria intensificar a tributação progressiva, especialmente sobre heranças.

Um ensaio de Krugman sobre Capital… ocupou três páginas do caderno “Mercado” da Folha de S.Paulo (26/4), destoando completamente de quase todos os analistas econômicos do espaço (uma exceção é Marcelo Miterhof), para depois repercutir em um artigo de Elio Gaspari e um editorial do mesmo jornal. “Esse é um livro que mudará a maneira pela qual pensamos sobre a sociedade e pela qual concebemos a Economia”, chega a afirmar no texto Krugman, peremptório.

Piketty juntou-se aos também economistas Anthony Atkinson e Emmanuel Saez (os três das escolas de Paris, Oxford e Berkeley) no levantamento da concentração de riqueza e renda nos Estados Unidos, França e Grã-Bretanha até o século 20, a partir de dados que remontam ao final do século 18 – pelos quais constatou-se a rápida ascensão de banqueiros e executivos. Além do aumento da desigualdade geral efetivado pelo domínio do 1% mais rico, junto com outros grupos mais estreitos. Por grupos mais estreitos entenda-se CEOs, grandes investidores, potentados das Comunicações, políticos e o crime organizado internacional com seu círculo de traficantes e senhores de armas.

A grande virada

Nos Estados Unidos e Grã-Bretanha, por exemplo, a proporção da renda nacional reservada ao 1% mais rico seguiu uma curva em “U”, diz Piketty, uma vez que este 1% mais rico detinha 20% da renda nacional antes da I Guerra Mundial. A proporção caiu a menos de 10% por volta de 1950, mas de 1980 em diante escalou de novo o primeiro patamar. “Nos EUA, retornou ao ponto em que estava um século atrás”, complementa Krugman.

O pior, no entanto, ainda está por chegar, já que “a grande ideia de ‘capital no século 21’ é não só a de retornarmos ao século 19 (das aristocracias faustosas) em termos de desigualdade de renda, como a de que estamos no caminho de volta ao ‘capitalismo patrimonial’, no qual os grandes píncaros da economia são ocupados não por indivíduos talentosos, mas por dinastias familiares”. Ou seja, a meritocracia foi para o espaço.

Enquanto nossos economistas seguem discutindo a disparidade social ignorando os muito ricos, mas inclusive com eles – na senda de papas internacionais como Robert Lucas, da Universidade de Chicago: “De todas as tendências prejudiciais a um estudo sólido da economia, a mais sedutora, e em minha opinião a mais venenosa, é tomar por foco as questões de distribuição.” (Aplausos e bravos de pé de Samuel Pessoa, Alexandre Shwartzman and others.) Piketty virá o binóculo para a planície.

A grande virada da superconcentração de riqueza, comenta Krugman, acontece a partir de 1908, quando “a parte do leão dos ganhos passou a caber ao topo da escala de renda e as famílias da metade inferior ficaram muito para trás”. Ele constata, inclusive, que a distribuição de renda, especialmente nos EUA, tornou-se mais desigual em favor dos super-ricos devido a ações diretas do governo, com a consequente “ascensão da desigualdade extrema ao longo dos últimos cem anos”. Vale dizer que estas conclusões se baseiam em dados do Serviço de Recenseamento do Federal Reserve Bank – o famoso FED, Banco Central americano, a partir de 1947; mais dados tributários dos Estados Unidos, Grã Bretanha e França do Século 17.

A elite no paraíso

E por que tudo isto? Porque é “a receita do capital (juros, câmbio, dividendos, ações, imóveis, terras), e não a renda do trabalho, que predomina no topo da distribuição de renda”. “O que demonstraria que estamos de volta a uma sociedade em que o patrimônio predomina sobre os salários na disparidade da renda”, diz Krugman. Ou, os coronéis sobre os profissionais. E isto dentro de um quadro recessivo e de crescimento em queda. Solução econômica de Piketty: tributação progressiva, isto é, mais imposto sobre os mais ricos, o que abriria a possibilidade de retomada do capital para investimento produtivo.

Contudo, a prática econômica mundial caminha no sentido contrário, prossegue Krugman, com a substituição de trabalhadores por máquinas, como acontece drasticamente na agropecuária e indústria brasileiras. Dispara Krugman: “É especialmente importante apontar que os lucros das empresas dispararam desde o começo da crise financeira (internacional) enquanto os salários – incluindo os das pessoas com nível mais elevado de educação – se estagnavam.” Dado: o banco privado brasileiro Bradesco faturou R$ 3,443 bilhões no primeiro trimestre deste ano, segundo balanço oficial da própria empresa. Um montante mais do que dez vezes superior ao superávit de R$ 240 milhões da balança comercial (exportações menos importações) do Brasil no mesmo período.

A tendência, assim, é o retorno a padrões como os de 1910 na França e Grã-Bretanha, quando a parcela 1% mais rica da população controlava 60 a 70% de toda riqueza nacional. No Brasil, não existem praticamente dados históricos de concentração de renda, conforme o próprio Piketty disse à Folha de S.Paulo, acrescentando que os poucos que existem são imprecisos, especialmente os do imposto de renda. Só que o retorno nem é preciso em vista dos condomínios versus favelas. De qualquer modo, Piketty constatou que a parcela hereditária da riqueza total da França ultrapassa hoje 70%, depois de ter ficado abaixo de 50% na década de 60. Vale dizer que as heranças no Brasil nunca são taxadas em mais do que 4%.

E ninguém vê isto? “A riqueza é tão concentrada”, comenta Krugman, “que um grande segmento da sociedade literalmente não tem consciência de sua existência, de forma que algumas pessoas imaginam que pertença a entidades surreais.” Tipo IURD – Igreja Universal do Reino de Deus – ou a Fifa.

O fato é que estes economistas apontam para a elite no paraíso contra o inferno atual da sociedade. Nos EUA, cita Krugman, além dos capitalistas no topo, os salários reais (descontada a inflação) do 1% mais bem pago subiram 165%, e os do 0,1% mais bem pago 362% (!) contra quase nada dos restantes 99% desde os anos 70.

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Zulcy Borges de Souza é jornalista