Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalista diz ter ‘vergonha do jeitinho’

Mais uma semana se passou e a iminência da Copa do Mundo bate à nossa porta. Por ela muitos estrangeiros vão entrar vindos das mais diversas partes do mundo e se misturar entre os brasileiros. Mas não com Ana Paula Padrão que, em sua última coluna na revista IstoÉ, diz ter vergonha do país em que vive e partirá quatro dias antes do primeiro toque de bola. Em suas palavras: “Não quero estar aqui na Copa. Tenho vergonha do país do puxadinho, da tapeação, do jeitinho. Jeitinho é sinônimo da incapacidade de planejamento”.

Não há problema nenhum buscar o descanso em outras terras e fugir da agitação que eventos desta proporção podem causar. Quem já não faz isso no Carnaval, por exemplo? O problema da afirmação da jornalista, mesmo que em tom de desabafo, é a reiteração de um preconceito: repetindo e repetindo uma característica negativa (o jeitinho), como se fosse exclusivo e inerente ao brasileiro.

Talvez a principal das características humanas seja sua capacidade de adaptação ao meio em que vive. Diante das instituições, leis, máquina burocrática, direitos, deveres e dificuldades, o indivíduo se adapta também. O que a princípio parece ser uma atitude disseminada de baixo pra cima (“é o povo brasileiro que é assim”) é, na verdade, um processo de cima para baixo. Roberto DaMatta (antropólogo brasileiro que dispensa maiores apresentações) relembra um pouco da história e explica:

“No Brasil, a República fez, no papel e em cima de um regime social aristocrático de fato, de direito e de protocolo ideológico, a revolução igualitária. Na França, ela levou um monte de gente para a guilhotina, aqui, ela inventou – é lógico – o ‘jeitinho’ e o ‘você sabe como está falando?’ como duas pernas de uma mesma ficção jurídica. Que ficção é essa? Ora, é o faz de conta que todos obedecem à lei, quando sabemos que os velhos aristocrata e os donos do poder (os burocratas, altos funcionários e os eleitos) são mais donos do que o ‘povo’. Com isso, podemos continuar contemplando o privilégio de não cumprir integralmente a lei, debaixo de um regime igualitário. […] A mídia ajuda a politizar o velho hábito que insiste em situar certos cargos e as pessoas que os empossam, como acima da lei; do mesmo modo e pela mesma lógica de hierarquias que colocam certas pessoas (negros, pobres e mulheres) implacavelmente debaixo da lei.”

Quando o “jeitinho” não funciona

A visão que Ana Paula Padrão ajuda a disseminar e que marca todo um povo não é muito diferente daquela que costuma criminalizar o preto pobre ao mesmo tempo em que é condescendente com o branco classe média. Vê com desprezo nossas dificuldades, entende que isso é culpa de um povo que não sabe se comportar e fecha os olhos para as vicissitudes alheias daquele país a que desejaria pertencer ou estar e que são inúmeras. Bastaria, para isso, abandonar o olhar turístico que tanto encanta os viajantes para saltarem à evidência os mesmos problemas e tantos outros que nem conhecemos.

O cinismo desse preconceito está em vários exemplos do nosso dia-a-dia, como em sobrevalorizar o “gato” que o pobre faz para ter luz elétrica em casa enquanto ignora a imposição de custos altíssimos para a produção de energia que inviabilizam a conta de quem não tem como arcar com a conservação de seus alimentos ou iluminação básica dentro de casa enquanto o desperdício elétrico é notável em qualquer lugar que você vá ou olhe. Ou apontar que o brasileiro não é pontual em suas reuniões e compromissos (e que sempre dá um jeitinho de mesmo assim acontecer ou participar) sem trazer à lembrança toda a dificuldade por que passa desde o momento que sai de sua casa até seu destino.

É importante dizer que o “jeitinho brasileiro” é um processo de reação face a algo que vem de cima. Não é uma “característica” negativa do brasileiro que faz com que as engrenagens não funcionem direito, mas sim, a própria estrutura de poder (lembre-se, vem de cima) que causa uma deformação que viabiliza ações não cívicas no cotidiano. E mesmo se tratando de poder, ele é repleto de jeitinhos. Inclusive além dessas terras: aparece no lobby legalizado nos EUA, nas negociações de mercado americano e europeu, na tentativa de corrupção para viabilizar aumento dos lucros (Alstom e Siemens são exemplos recentes) e tantos outros que chegam até aqui e nos afetam a ponto de transformar nossa maneira de lidar com as coisas.

O jeitinho não é brasileiro, pois não é só nosso. Não adianta pegar um avião e mudar de país: esse “jeitinho” não funciona.

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Alexandre Marini é licenciando em Sociologia