Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A Copa da marra

Centro das atenções mundiais por conta da Copa do Mundo, como era de se esperar, o país virou saco de pancadas da imprensa internacional e de seus próprios súditos. Levou pancada pelo que fez e pelo que não fez, começando pelo pênalti duvidoso na vitória sobre a Croácia, como se, apesar da ajuda da arbitragem, o time não tivesse jogado bem e feito por merecer o triunfo. Isso e logo no dia seguinte, quando Espanha e Holanda ainda empatavam, um pênalti ainda mais cabuloso, em que o hispano-brasileiro Diego Costa mais escorregou do que foi derrubado, foi considerado bem marcado pelos entendidos, reforçando a impressão que nem a seleção está imune ao ranço de má vontade que permeia a competição.

O tom marrento também se fez sentir no destaque dado as vaias e ofensas dirigidas a presidente Dilma Rousseff e a cúpula da Fifa, interpretado como um aviso de que o clima de festa que começou a predominar, graças ao frenético oba-oba das mídias audiovisuais, não significa que as objeções tenham se obliterado em função do tradicional transe futebolístico. Mesmo porque os protestos continuam acontecendo, ainda que restritos a grupelhos mais radicais cujas ações vêm sendo isoladas e repelidas por um grandioso aparato preparado para coibir pronta e energicamente os eventuais abusos

Aparato representado por um contingente policial raramente visto no país, paramentado e de prontidão para garantir a segurança das delegações estrangeiras e, sobretudo, intervir em possíveis manifestações mais agressivas. O que só não foi capaz de impedir os xingamentos que ecoaram no Itaquerão na abertura da Copa, expondo a presidente a um constrangimento mundial que acabou manchando a própria cerimônia, por sinal pra lá de modesta. Um showzinho tão pífio que custa acreditar que tenha consumido R$ 18 milhões, se bem que coerente com a exuberância das cifras relacionadas a tudo que cerca o megaevento.

Disparidades e distorções

De fato, não surpreende que coisas desse gênero ocorram em meio a uma competição estigmatizada por um inusitado sentimento de rejeição extravasado por boa parte da população, em protesto aos elevados gastos impostos pelo repudiado – e zoado – padrão Fifa de qualidade. Protestos que na verdade são uma extensão das chamadas jornadas contestatórias de junho do ano passado, e que parecem incorporadas ao novo cenário sócio-político que vai se formatando a partir de um maior engajamento e clamor popular. O que não deve impedir uma provável trégua à medida que a competição avança e por mais que a possível conquista do hexa possa ser capitalizada politicamente pelo governo, como sói acontecer.

O problema é que, se são evidentes os sinais de que a resistência e a própria torcida para o fracasso da seleção transcendem o âmbito futebolístico, e se ancoram no fenômeno da polarização política que sobreveio a chegada do PT ao poder, quem perde mais uma vez é o país, que além da imagem denegrida, continua refém de uma divisão de classes em que a maioria iletrada e dependente de programas sociais é que faz a diferença nas urnas. Não é outra a explicação para o contraste entre as seguidas manifestações de hostilidade que vem marcando as aparições públicas da presidente e a vantagem ainda folgada que mantém nas pesquisas de intenção de voto.

Não é segredo para ninguém que toda a estratégia e discurso hegemônico petista gravita em torno das disparidades e distorções históricas da sociedade. Fato que o próprio ex-presidente Lula voltou a enfatizar, em resposta a enorme repercussão das hostilidades contra a presidente oriundas dos setores VIP do estádio e não obstante ter se mantido a prudente distância do epicentro dos acontecimentos, ao destacar que de um lado estaria a elite e a burguesia; do outro, as camadas mais humildes e majoritárias da população. Ou seja, além da reafirmação do discurso segregacionista como principal pièce de résistance do petismo, o episódio evidenciou que esse tipo de demarcação de território deve continuar servindo de pano de fundo para as discussões políticas no país.

Banquete televisivo

E no pé em que as coisas estão, vai ser difícil que o cenário mude, ganhando a Copa ou não. É claro que um eventual fracasso dos comandados de Felipão pode botar lenha da fogueira, reascender as discussões sobre a exorbitância dos gastos e tudo mais, mas a não ser que o vexame seja muito grande, tipo a humilhante goleada sofrida ante a Holanda pelos badalados espanhóis, a percepção de que já não somos os melhores do mundo tende a atenuar as coisas. Por mais que o descontentamento com os rumos do país estejam à flor da pele, misturar insatisfações de fundo social e político com a festa suprema do futebol não vai servir senão para macular nossa imagem de povo alegre e ordeiro.

Ainda mais que as coisas caminharam relativamente ao longo da rodada inaugural da competição. Os estádios lotaram e alguns probleminhas pontuais não chegaram a atrapalhar. Nada que servisse de desculpa, por exemplo, para o vexame de espanhóis e uruguaios, por enquanto as surpresas negativas. Como era de esperar, italianos e britânicos reclamaram horrores das condições climáticas do jogo de Manaus, o que soou muito mais como frescura do que outra coisa, lembrando-se que outras copas já foram jogadas sob condições adversas, como no calor escaldante de México e Estados Unidos, e ninguém morreu.

Quanto à cobertura propriamente dita, em que pese o uso e abuso de hipérboles e superlativos, confirma-se a impressão de que a Copa parece ter sido feita sob medida para a televisão. A instantaneidade, os novos recursos tecnológicos e o concurso de um sem-número de profissionais, convidados e famosos de todos os segmentos, deixam as demais mídias a léguas de distância.

Para a imprensa escrita, que nunca pareceu tão dispensável, a única revanche possível está no rescaldo, nas matérias de fundo e de mais fôlego, sobre os detalhes e as minúcias que fogem ao alcance das câmeras. Ou seja, valer-se de pratos mais finos, com direito a louça e vinho de primeira, para ser degustado a posteriori. Mais do que nunca, o único meio de fazer frente ao fast-food do banquete televisivo.

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Ivan Berger é jornalista