Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O uso errado do termo ‘alienação’

Época de Copa do Mundo e por isso não vai faltar nas redes sociais gente acusando fulano ou ciclano de ser alienado por acompanhar os jogos. Ou seja, na visão dessa gente, a pessoa que acompanha futebol fica automaticamente “burra”. Pessoas que assistem novela também são frequentes alvos desses pseudo-intelectuais. A pergunta é: será que essa gente sabe de fato o que é alienação? Pela maneira que usam, não.

Alienação é o fenômeno em que os humanos criam ou produzem alguma coisa, dão independência a essa criação como se ela existisse por si mesma e em si mesma e acabam se deixando governar por ela como se ela tivesse poder por si mesma e em si. Os humanos não se reconhecessem nessa obra que criaram, fazendo-a um ser-outro, separado deles, superior a eles e com poder sobre eles. O nome “alienação” vem do latim alienare, tornar algo alheio a alguém ou seja, algo pertencente ao outro.

Karl Marx usou dessa definição para explicar que, no capitalismo, o cidadão alienado seria aquele que transferia suas potencialidades para seus produtos, ou seja, deixava de identificar estes produtos como obras suas.

Há vários tipos de alienação: há o trabalho alienado, o consumo alienado, o lazer alienado e relação social e pessoal alienado. Podemos enquadrar novela e o futebol em algum deles? Vejamos. No trabalho alienado, óbvio que não. O trabalhador alienado é aquele que não pode desfrutar financeiramente dos benefícios de sua própria atividade. O trabalho alienado produz para satisfazer as necessidades do mercado. A produção econômica foi transformada no objetivo do homem em vez do homem ser o objetivo da produção. O trabalhador alienado sofre com a rotinização, o desprazer, o embrutecimento e a exploração.

Consumo alienado? Também não. O consumo alienado tem a ver com o prazer do uso sendo substituído pelo poder de posse. Em outras palavras, o indivíduo compra uma grande quantidade de coisas apenas para ser possuído, e não usufruído. Exemplo: um cidadão compra uma grande quantidade de CDs musicais só para dizer que tem, mas nunca os escuta.

Apenas formas de lazer

Lazer alienado? Tampouco. O lazer alienado acontece quando o consumidor alienado compra seu lazer como se tivesse comprando papel higiênico. Consome tanto lazer, mas nunca se envolve autenticamente com ele. O individuo força ou finge está se divertindo, mas na verdade não está. Não podemos enquadrar futebol ou novela aqui, pois se o indivíduo assiste novela e futebol e gosta de assistir, há o prazer sincero, portanto não é lazer alienado. Daí o leitor pode indagar: “Mas e se ele compra ingressos para os jogos sem nem gostar de futebol, ou gasta bastante com novela, sem gostar, não estaria sendo um alienado?” Sim, estaria, porém, não vai ser o futebol ou a novela a fonte dessa alienação. O lazer alienado é quando não há envolvimento autêntico entre o indivíduo e a atividade de lazer, se ele não gosta sinceramente com futebol e novela não pode estar envolvido com ambos, tampouco ficando alheio a eles.

Relação pessoal e social alienada? Não mesmo! Relação pessoal alienada é quando um indivíduo perde o contato consigo mesmo, se sente como uma coisa ou mercadoria no “mercado financeiro”: sucesso financeiro, profissional, intelectual, social etc. O indivíduo se sentirá valioso caso consiga sucesso; se não conseguir, se sentirá imprestável. Já relação social alienada é a indiferença correspondida entre as pessoas, não há troca de experiências e sentimentos verdadeiros humanos. Exemplo: alguém é assaltado em plena luz do dia em uma rua lotada, mas as outras pessoas não ajudam.

Partindo destas definições, podemos dizer que uma pessoa que curte futebol e novela é alienada? Não. O futebol foi criado pelo ser humano e a novela também, mas não é porque a pessoa os acompanha que significa que seja governada por ambos. São apenas formas de lazer, da mesma maneira que uma pessoa vai ao cinema, à praia etc. Assistir ao futebol não vai te deixar alheio ao futebol, assistir à novela não vai te deixar alheio à novela.

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Roni Pereira é filósofo, Salvador, BA