Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Palavras & palavrões

Solange, a prima que adora falar difícil, leu o que escrevi aqui na semana passada – e, uma vez mais, veio me puxar os pavilhões auriculares, isto é, as orelhas: por que, ralhou ela, chamei de “bagres ensaboados” a rapaziada que agora deu para depilar o corpo inteiro, se a língua portuguesa tem à disposição o adjetivo “glabro”, sob medida para quem não tenha pelo, barba ou penugem? Em tom de reprimenda, a prima cobrou fidelidade às crianças que fomos, invocando as horas que passávamos a garimpar bizarrias nos dicionários Caldas Aulete e Laudelino Freire.

Verdade. Começamos, confesso, catando denominação e descrição de nossas partes pudendas, àquela altura ainda implumes. Imagino a farra que teria sido se já existisse o Dicionário do Palavrão e Termos Afins, do Mário Souto Maior. Quando por fim nos fartamos daquela mineração sacano-lexical, enveredamos por outras sendas, como gosta de dizer a prima – e por um bom tempo nos dedicamos à busca de esquisitices menos específicas.

Graças a isso, vim a me tornar conhecedor de palavras com que jamais topei fora do dicionário – por exemplo, amaxofobia, que o Houaiss define como “medo mórbido de se encontrar ou viajar em qualquer veículo”. Oaristo, menos rara, que vem a ser a conversação íntima entre esposos de qualquer sexo. Alpondras, aquelas pedras à flor da água que permitem atravessar o rio sem molhar os pés se você não se chama Jesus. Hápax, “palavra ou expressão de que só existe uma única abonação nos registros da língua”. (Pronto, acho que tirei a virgindade do hápax.)

Na adolescência, emplumados em mais de um sentido, fomos, a Solange e eu, cada qual para seu lado. Ela desandou a ler tarugos impenetráveis, teoria braba – dia desses, quis me aplicar as mais de 400 páginas de um volumão cujo título já me fez arrepiar carreira: Do morfema indo-europeu N em latim. Não tem em DVD?, perguntei.

De minha parte, mantive o hábito de vadiar no dicionário (tenho vários), que para mim tem sido, mais que caixa de primeiros socorros, um manancial onde explorar as virtualidades da língua. Adorei saber que Monteiro Lobato também tinha o vício. Nem por isso era um exibido da pena. “Depois do enriquecimento vocabular”, escreveu ele ao colega e amigo Godofredo Rangel, “é preciso que aprendamos a bem gastar o acumulado, como faz o rico inteligente, senão viramos nouveaux riches e insensivelmente nos metemos a ostentar riqueza vocabular”.

Número 13

Contra eventuais opiniões em contrário, tenho a pretensão de achar que não sou nenhum nouveau riche do léxico. O que me move é outra coisa, é o gosto pelas palavras. Mesmo aquelas a meu ver muito feias, como fronha, cônjuge e enxaqueca.

Já falei do quanto me fascina a ideia de que a cada coisa corresponde uma palavra, dicionarizada ou não. Os pelos dentro do nariz? Vibrissas. O algodãozinho que o roçar da roupa deposita em nossos umbigos? Flunfa. Mesmo na Junta Comercial, poucos saberão que tem nome o “&” usado para juntar, como um clips, duas partes na razão social de uma empresa, fulano & filhos – e que nome! Ampersand. Procura aí se acha que estou inventando.

Até gosto de invenções verbais. Meu amigo Flávio de Carvalho, que tanta falta faz, não se mandou sem me contar que, na era do celular, existe um neologismo para o medo de ficar sem ele: nomofobia. Do inglês “no mobile”, destrinchou o Flávio.

Tudo tem nome, então? Quase tudo. Por mais que tenha frequentado dicionários, foi preciso que aqui desembarcasse a pequena Gloria para eu me dar conta da inexistência de um substantivo – avoíce? avoidade? – a designar a condição de avô e avó.

Pena já não estar aqui o Otto Lara Resende, outro maníaco das palavras. Estou me lembrando de uma crônica divertida que ele cravejou com palavras de prefixo “miso”. Só assim fiquei sabendo que existe um nome para a aversão à barba: misopogonia. Não adianta procurar no Houaiss, onde não vai encontrar também triscaldecofobia, pavor diante do número 13. Com o Otto aprendi ainda que há por aí um monte de gente padecendo de misosofia. Significa horror ao saber. Nunca ouviu falar? Não se avexe. Nem a Solange, com todos os seus morfemas, conhecia essa esquisitice meio fanha.

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Humberto Werneck é colunista do Estado de S.Paulo