Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Com o carimbo da suástica

“Deve ser ótimo”, comenta a leitora em potencial ao ver sua capa na livraria. O autor, Bem Urwand, lhe é desconhecido, mas seu tema (“o pacto entre Hollywood e o nazismo”) promete uma eletrizante lavagem de roupa suja, reforçada pelo título (A Colaboração) e pelo chamariz ao lado do logo da editora: “Pesquisa inédita”. Na edição original, o pacto é “de Hollywood com Hitler”. Talvez entre nós a palavra nazismo tenha mais peso que o nome do Führer, no entanto em destaque na capa, assistindo, absorto, a um filme. O pacto é o mesmo. Segundo Urwand, a indústria de cinema americana, mais do que se acovardar diante das pressões exercidas pela Alemanha de Hitler, colaborou estreitamente com o Nacional Socialismo.

Difícil acreditar que uma indústria criada e administrada por imigrantes judeus possa ter vendido a alma ao demônio nazista nos termos descritos no livro. Colaboração é uma palavra demasiado forte para descrever um relacionamento mais norteado pela omissão, pela covardia, do que pela cumplicidade.

Nos anos 1930, Darryl F. Zanuck era o único gentio a dar as cartas à frente de um grande estúdio, a Fox. Se por um lado os demais chefões, por motivos óbvios, temiam a expansão do antissemitismo, por outro receavam perder o mercado exibidor alemão, periclitante antes mesmo da ascensão de Hitler ao poder, em 1933. Três anos antes, ainda na República de Weimar, o drama de guerra pacifista Sem Novidades no Front fora retirado de cartaz em Berlim depois de recebido a pedradas por arruaceiros nazistas liderados por Joseph Goebbels, futuro ministro da Propaganda e mandarim cinematográfico do 3.º Reich.

Filmes que desagradassem ao regime nazista (nada de expor e criticar a sociedade alemã e sua política racial) e contivessem personagens e atores judeus eram cortados ou sumariamente proibidos. Hitler adorava o cinema americano; seu filme favorito era Lanceiros da Índia, aventura colonialista produzida pela Paramount em 1935, e também era fã de O Grande Motim; mas nem as inocentes peripécias de Tarzã escaparam da censura controlada por Goebbels. Ainda que o mercado exibidor alemão fosse pequeno se comparado ao da Grã-Bretanha, mantê-lo era uma questão de honra para o governo Roosevelt, empenhado ao máximo em vender mundo afora as vantagens de uma sociedade democrática e acolhedora.

Tudo isso é sabido e foi tratado em diversos livros sobre a convivência e os enfrentamentos do cinema americano com o nazi-fascismo. O melhor deles, até agora, Hollywood and Hitler, 1933-1939, de Thomas Doherty, saiu pela Columbia University Press, em março do ano passado. Como nem sempre quem mais merece chega primeiro ao nosso mercado, a Leya preferiu traduzir o de Ben Urwand, lançado pela Harvard University Press seis meses depois.

“Drama da Depressão”

Mestre em cinema nascido na Austrália e professor nos Estados Unidos, Urwand viu centenas de filmes dos anos 1930 e 1940, pesquisou vasta documentação relacionada com a indústria de filmes e a diplomacia alemã, juntou muita história boa, mas não consumou o estudo definitivo que ambicionava. Seu projeto surgiu de um clip com o escritor Budd Schulberg, em que o filho do antigo chefão da Paramount B.P. Schulberg, mais conhecido por ter sido o roteirista de Sindicato de Ladrões, revelava que o todo-poderoso da Metro na década de 30, Louis B. Mayer, mostrava toda a produção do estúdio em primeira mão para o cônsul nazista em Los Angeles e mandava cortar tudo aquilo que o cônsul objetasse.

A acusação é grave. Urwand deveria ter sopesado a raiva que Schulberg tinha de Mayer e vice-versa, e encampado a denúncia com um grão de sal. Impossibilitado de ouvir Mayer (morto em 1957) e outras testemunhas da época, Urwand saiu atrás de evidências que a comprovassem. Não as encontrou na forma desejada. Cheio de insinuações que não se materializam no concreto, omissões graves e conclusões precipitadas, seu livro tem um pezinho no sensacionalismo. A certa altura, sem peremptória comprovação, o autor acusa Hollywood de ter alimentado a indústria armamentista nazista.

Georg Gyssling, o tal cônsul nazista, era um vilão insinuante estilo Conrad Veidt (o major Strasser de Casablanca), que frequentava o petit monde hollywoodiano, assistia a filmes em sessões privadas, lia scripts previamente e trocava mais ideias com o antissemita Joseph Breen, patrulheiro do Código Hays de censura, do que com os chefões dos estúdios. Fez lobby, ameaças inconsequentes, mas nunca foi o superego que A Colaboração nos apresenta. Em seu livro sobre o período, Doherty o reduz ao que me parece ter sido sua dimensão real.

A resistência às pressões nazistas foi maior do que a retratada por Urwand, que ignora várias produções visivelmente “antifascistas” do decênio, como A Legião Negra, As Aventuras de Robin Hood, Capitão Blood, Juarez e O Prisioneiro de Zenda. Sua observação de que quando do lançamento de O Despertar de Uma Nação (Gabriel Over the White House), delírio fascistoide produzido independentemente por William Randolph Hearst em 1933, fazia três anos que Hollywood não tocava nas “principais questões do dia (desempregos em massa, esquemas corruptos, proibições, dívidas de guerra, proliferação de armamentos)”, não confere. No espaço de 18 meses entre 1931 e 1933, só Roy Del Ruth dirigiu 10 filmes abordando esses assuntos. Sem contar O Fugitivo e Alma no Lodo, ambos de Mervyn LeRoy, Loucura Americana, Irene, a Teimosa e vários outros também desprezados pelo autor. O Fugitivo é o único mencionado, por ter obtido grande sucesso nos cinemas de Berlim e só por isso.

Ao abordar a saga da mais célebre família de banqueiros, The House of Rothschild, projeto polêmico bancado pela Fox em 1934, Urwald comete a injustiça de responsabilizá-lo pelo uso indevido que os alemães fizeram de sua abertura no panfleto antissemita, O Eterno Judeu, produzido seis anos mais tarde. Não sei o que é mais grave, se dividir a culpa de um delito entre o infringente e sua vítima ou julgar uma obra pelo que ela não é, como o autor fez com O Pão Nosso, de King Vidor, apresentado como um filme de mensagem nacional-socialista.

Ora, O Pão Nosso, concebido em 1934 como uma continuação de A Turba, exaltava as fazendas cooperativas, arrasava com a usura bancária, era o típico “drama da Depressão”, que por certos setores do conservadorismo foi acusado de comunista e a cuja divulgação a cadeia de jornais de Hearst recusou espaço. Se a crítica alemã comparou o líder comunitário do filme a Hitler, miopia ou wishful thinking dela, que Urwand deveria ter desprezado ou repelido, em vez de lhe dar corda, prestando involuntariamente sua colaboração ao ideário nazista.

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Sérgio Augusto é colunista do Estado de S.Paulo