Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Jornalistas censuradas na Venezuela recebem prêmio nos EUA

O dia era 16 de março, um domingo, e as jornalistas Tamoa Calzadilla e Laura Weffer sentiram na pele o peso de uma realidade que afeta grande parte da imprensa venezuelana: a censura. Funcionárias do diário Últimas Noticias, as duas trabalharam juntas na reportagem “Lo que hay detrás de las guarimbas” (O que existe por trás dos protestos), sobre as diferenças e semelhanças de jovens, manifestantes e policiais, que se enfrentavam à época pelas ruas de Caracas. Não era o enfoque pretendido pelos novos donos do jornal, um grupo pouco conhecido que mudou a linha editorial do veículo, aproximando-o do governo. Impedidas de publicar seu trabalho, as duas deixaram o jornal, mas a história se espalhou pela internet e foi reconhecida pela Universidade de Columbia com o Prêmio Maria Moors Cabot, um dos mais tradicionais do jornalismo internacional, concedido em meados de outubro.

“É muito difícil ser jornalista na Venezuela. É uma luta diária contra os donos dos veículos, as pressões do governo, as decisões judiciais”, conta Tamoa ao Globo. “O que mais me deixa contente com o prêmio Cabot é que ele colocou luzes sobre o que está acontecendo na Venezuela. Nós não vamos nos render às pressões.”

Tentativa de desqualificar protestos

Tamoa atuava como coordenadora da Unidade de Investigação do Últimas Noticias, extinto após sua saída. Na reportagem em questão, a diretoria do jornal queria desqualificar os manifestantes, dizendo que os jovens que participavam dos atos eram “financiados” por grupos políticos, fato não confirmado durante a apuração. O texto final das duas descrevia a atuação e a organização dos protestos de forma factual e, por isso, não foi publicado.

Tamoa recorda que, na discussão com os diretores, deixou claro que não aceitava pautas para “condenar ou favorecer alguém” e ouviu como resposta frases como “não me venha dar aulas de jornalismo” e “se você pode condená-los? Claro que pode”. No dia seguinte, Tamoa deixou o jornal. “Já não me necessita para este posto, precisa é de uma operadora política, alguém com conhecimento em propaganda oficial, e sabe que essa pessoa não sou eu”, escreveu a jornalista em sua carta de demissão, após 15 anos na empresa.

Atualmente, Tamoa atua no jornalismo digital, descrito como um refúgio para ela e outros que foram forçados a deixar os grandes veículos, a maior parte dominada por grupos econômicos ligados ao governo do presidente Nicolás Maduro. Mas mesmo quem trabalha com a internet não se sente seguro. “O governo já derrubou alguns portais, chegou a desligar toda a internet por quase uma hora em abril”, conta Tamoa. “E temos casos de jornalistas hackeados. É muito comum os telefones serem grampeados. A nossa conversa agora pode estar sendo gravada. É assustador, todos temos medo neste país, mas o meu medo não me impede de trabalhar.”

No site em que trabalha, o runrun.es, cujo servidor é sediado na Espanha, ela diz ter mais liberdade para trabalhar, mas lamenta o pouco alcance do veículo, principalmente entre as camadas mais populares. Apesar disso, o portal tem mais de 1 milhão de seguidores no Twitter, o que facilita a circulação das informações publicadas.

505 violações à liberdade de expressão

A situação vivida por Tamoa e Laura não é exceção na Venezuela. Segundo dados da ONG Espacio Público, entre janeiro e outubro deste ano foram registradas 505 violações à liberdade de expressão no país, 65% mais casos que no mesmo período de 2013. A censura, com 115 denúncias, é o principal problema, seguida por agressão (86), ameaça (81), intimidação (73), perseguição verbal (61), perseguição judicial (34), ataques (29), restrições administrativas (25) e morte (1).

Os casos se concentram mais na capital (49,5% do total), mas se espalham por praticamente todo o país. A internet registrou 25 violações à liberdade de expressão.

Segundo Andrea Garrido, coordenadora da ONG que monitora a liberdade de imprensa no país, a troca no controle acionário dos veículos vem degradando ainda mais o trabalho dos jornalistas na Venezuela, já acossados pelo governo e pelo Judiciário. “Em muitos casos, os novos donos são desconhecidos, mas percebemos claramente a mudança nas linhas editoriais”, alerta Andrea. “Houve um protesto recente dos jornalistas, que lutam pelo direito de não assinar artigos que sejam modificados pelos veículos. E, como mostra o nosso levantamento, a censura está em alta, imposta pelos jornais e, por vezes, pelos próprios repórteres, que deixam de publicar notícias por medo de perseguição e agressões.”

< ****** Sérgio Matsuura, do Globo