Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

31 de dezembro e é só. O resto é com todos nós

Diz a nota publicada na coluna “Gente Boa” (Globo, 24/11) que vai ser exibida na noite de réveillon nos telões da praia de Copacabana, minutos antes da queima de fogos, mensagem do papa Francisco parabenizando a cidade pelo próximo aniversário de 450 anos.

A questão de sermos ao não um Estado laico me parece que volta a se impor diante da notícia. Isso porque o réveillon na orla do Rio é uma festa pública patrocinada pelos cidadãos locais e festejada por gente de todos os matizes. Com isso, para muitos, mesmo que poucos, o papa não representa a voz sagrada da benção universal. E se estiver falando como chefe de Estado, recomenda a diplomacia que temos que ouvir todos os demais, o que não seria apropriado para a ocasião. Nesse caso, vale o bordão: “Viemo aqui pra bebê ou pra cunversá?”

Diante do que pode se converter em um problema que ameace o brilho da festa que pertence a todos, creio ser interessante lembrar breve artigo de Luiz Antônio Cunha, coordenador do Observatório da Laicidade na Educação, centro ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, que ajuda a esclarecer o porquê de uma nota acrítica e uma iniciativa sem medida de consequência das autoridades serem dadas como naturais.

O texto, de 2009, começa com a pergunta “Brasil: laico ou concordatário?” De acordo com o autor, o Brasil nunca foi um Estado laico, pois desde sempre se comportou como um Estado concordatário, o que terminou por ser explicitado na Concordata firmada com o Estado do Vaticano em fins de 2008. Isso significa dizer que os privilégios concedidos à Igreja Católica – e somente a ela, excluídas as demais cristãs e quaisquer outras religiões – passaram a ter força de lei, em favor da Santa Sé.

Coisa pública e religião

Um caso já conhecido é o do laudêmio, estatuto do direito medieval que não está na Constituição brasileira e que permite à Igreja Católica receber o imposto de transmissão e uma quantia anual a ser paga pelo novo dono do terreno. Outro caso diz respeito ao direito do trabalhador. Luiz Antônio observa que a Concordata “separa os quadros da Igreja Católica de todos os demais da legislação trabalhista brasileira e da Justiça do Trabalho”. “Ela retira de seu âmbito observador todos os casos de petições de reivindicações de direitos para sacerdotes, irmãos, leigos e freiras; enfim, do pessoal da igreja católica. A Concordata estabelece que seu trabalho é necessariamente voluntário.” E conclui: “Isso é incrível porque o que está acontecendo é que gente que trabalha para a Igreja Católica durante décadas e depois vai à Justiça do Trabalho e busca reivindicar direitos, vai encontrá-la legalmente impedida.”

Daí que, a tirar um pouco pelo texto, papa e réveillon na orla de Copacabana, duas entidades que simbolizam a paz, não significam necessariamente laços harmoniosos e muito menos unânimes de representação. Seja quem for que teve a ideia, parece ter se baseado em um insight equivocado – e até arriscaria dizer autoritário, como costumam ser os raciocínios do lugar comum que não contemplam a complexidade necessária em situações que envolvem o Estado.

Penso que, no caso, o melhor seria não privatizar no domínio santo da igreja católica a mensagem de felicidade e deixar todos os panteões falarem por si mesmos como de há muito vem ocorrendo nestas águas da Guanabara onde, já cantou Eduardo Dussek, “o mar passa calorosamente a língua na areia”. A propósito, acho que o assunto pode render uma boa matéria, ou seja, o bom debate sobre uma perspectiva que ainda insiste em misturar coisa pública e religião.

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Maria Luiza Franco Busse é jornalista e doutora em Semiologia