Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

‘David e Golias’ moderno

Desde tempos imemoriais, a humanidade é fascinada por histórias que relatam confrontos entre hérois mitológicos e poderosos gigantes. Em sua famosa Odisseia, o escritor grego Homero descreve como Ulisses conseguiu ludibriar o ciclope Polifemo, um gigante de apenas um olho. Por sua vez, o conto de fadas João e o pé de feijão é centrado nos antagonismos entre um garoto e um temível gigante. Já o triunfo do pequeno Davi sobre Golias é uma das narrativas mais comentadas da mitologia judaico-cristã. Nesse sentido, não é por acaso que o futebol, talvez o único esporte em que o mais fraco tecnicamente pode superar o mais forte (a famosa “zebra”), é um dos entretenimentos mais populares do planeta.

Fazendo uma analogia entre essas clássicas histórias e a nossa contemporaneidade, podemos afirmar que as redes sociais (espécies de “Davi moderno”) são importantes mecanismos para denunciar os preconceitos e manipulações realizados pela “gigante” Rede Globo.

No mês passado, a emissora da família Marinho transformou o filme Tim Maia, de Mauro Lima em uma minissérie de dois capítulos intitulada Tim Maia – Vale o que vier. Entretanto, a versão televisiva trocou as cenas em que Roberto Carlos despreza e humilha Tim Maia (então em início de carreira) por depoimentos positivos de Nelson Motta (autor do livro que inspirou o longa-metragem) e do próprio Roberto. Em outros termos, a Globo alterou o enredo da obra para não manchar a imagem de um dos seus mais importantes contratados e, não obstante, colocou o “rei” como principal padrinho musical de Tim Maia. É o “padrão Globo de manipulação”.

Ventos de mudança

Todavia, ao contrário do que ocorria em outras épocas, as reações do público foram imediatas. A distorção global não passou despercebida. Logo após a exibição da minissérie, milhares de internaturas se manifestaram nas redes sociais e compartilharam inúmeros textos que denunciavam a farsa televisiva. Não por acaso, devido à grande repercurssão negativa, a emissora retirou a minissérie de sua página da web.

Já uma declaração de Renato Aragão à revista Playboy define emblematicamente o atual contexto dos meios de comunicação em nosso país. Segundo o veterano comediante cearense, “o humor politicamente incorreto vive uma perseguição e naquela época (dos Trapalhões) essas classes dos feios, dos negros e dos homossexuais não se ofendiam”. Ora, como bem asseverou o professor Lucas Dias, em postagem no Facebook, eles não se ofendiam, pois não possuíam o mero direito de se ofenderem. Se outrora, negros, gays e outras minorias não dispunham de espaços públicos ou do grau de instrução necessário para se engajarem contra as humilhações a que eram submetidos, atualmente, o acesso às redes sociais e ao ensino superior (vide política de cotas, por exemplo) fazem com que esses segmentos sociais excluídos tenham voz ativa e não aceitem mais nenhuma forma de ridicularização.

Sendo assim, apesar de o dia em que “o pequeno Davi virtual” superará o “Golias midiático” ainda estar muito distante, o “gigante das comunicações” não consegue manipular a opinião pública em ampla escala e tampouco pode discriminar as minorias como fazia em outras épocas. É a tecnologia sendo empregada para conscientizar a população e atacar a arrogância do status quo. Embora timidamente, ventos de mudança têm soprado no Brasil.

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Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas: Brasil, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de Geografia em Barbacena, MG