Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A seletividade de nobres sentimentos

Todo atentado à vida humana é inadmissível. Qualquer um que, munido de suas crenças, razões ou princípios, venha a cometer atos de violência contra o seu semelhante deve ser exemplarmente punido. A chacina de doze pessoas ocorrida na sede do semanário parisiense Charlie Hebdo reforça de forma cruel o quanto a intolerância e a incapacidade de lidar com o diferente podem ser nefastos para a vida em sociedade. Trata-se de um crime perpetrado. Portanto, por criminosos que devem ser presos, julgados e sentenciados. Indubitavelmente, medidas devem ser tomadas para que fatos análogos não voltem a acontecer.

Pois bem, tudo o que até agora foi dito é nada além do que lugar-comum. Apenas uma introdução para deixar claro o meu ponto de vista em face do ocorrido e, assim, evitar julgamentos equivocados em relação à minha postura ante o atentado. Apesar disso, escrevo por outro motivo: je suis Charlie.

A frase acima em poucas horas tomou os meios de comunicação e converteu-se em um movimento físico reproduzido em muitas das grandes urbes ao redor do mundo. Todos enlutados pela abjeta morte dos paladinos da liberdade de expressão. Há poucos minutos, no Jornal Nacional, Edney Silvestre resumia o intenso nível de emoção e engajamento por qual o mundo fora subitamente tomado. O Brasil fez sua parte: demonstrações de apoio na zona sul do Rio de Janeiro e no vão livre do Masp, habituais pontos de encontro dos que clamam pelo fim da violência (em outras ocasiões vestiram branco ou tinham por marca registrada as mãos unidas em alusão à uma pomba da paz) e também por outras demandas pelas quais se identificam. Clima de consternação e dor seletivas que corroboram a ideia de que semelhante é somente aquele que partilha dos mesmos ideais, anseios e, sobretudo, visibilidade e classe econômica.

Pois bem, sou convicto em afirmar: em pouco ou nada vai mudar a minha vida a morte de muitas das pessoas que conheço. Muito provavelmente não velarei quase que a totalidade de meus amigos virtuais e, mesmo que me entristeça por saber do ocorrido, o fato de alguém vir a óbito, salvo minha família e pouquíssimos amigos, sequer alterará a minha rotina. Caso assim não fosse, viveria eu (e a humanidade, por consequência) em permanente luto. Pois, o que não nos falta, são tragédias decorrentes da nossa natureza finita.

A violência seletiva

O que enxergo através do movimento gerado a partir do triste episódio da Charlie Hebdo é a cristalização (semelhante ao que discorreu um outro francês, Stendhal) do narcisismo e da necessidade de aprovação junto àqueles pelos quais são estes a todo momento observados. É um movimento que exala de suas glândulas um aroma bastante atraente aos que o compõem: a bandeira da não-islamização do ocidente e a defesa da liberdade de expressão (desde que essa autonomia seja exercida pelos que mereçam detê-la). Ou então, ao menos, uma ótima maneira de se parecer politizado ao replicar uma hashtag com os já famosos dizeres somada à já tradicional selfie, agora munida de igual cartaz. É garantia de muitas curtidas e, quem sabe, um ou outro compartilhamento.

Em 2013, no documentário Dirty Wars, o jornalista Jeremy Scahill narra uma ação de um grupo de operações especiais estadunidense no Afeganistão chamado JSOC. Segundo consta através do que foi apurado, nesse tipo de ação, muito corriqueira para este esquadrão (conhecidos como talibãs norte-americanos), eles invadiram durante a noite uma residência em que ocorria uma festa, abriram fogo contra todos que estavam desarmados e mataram, inclusive, crianças e uma mulher grávida. No mesmo filme, vemos o caso do filho adolescente de um radical islâmico já morto na chamada guerra ao terror. Ele é assassinado (na verdade pulverizado) por um drone enquanto caminhava com amigos em uma pacata rua de uma cidadela da Jordânia. Alegaram que ele poderia vir a tornar-se um terrorista, por isso a medida radical. Seguem-se ainda a estes outros fatos de igual ou maior violência. Tais fatos servem de ilustração. Porque é aí que entra a seletividade de tão nobres sentimentos externados.

Não vi em nenhum telejornal ou qualquer outro veículo da grande imprensa pessoas segurando cartazes em referência à grávida morta naquela operação. Ninguém quis saber quem eram os mais de cem mortos do semelhante atentado ocorrido mês passado na Nigéria. Não vejo as mesmas pessoas empenhadas para que ninguém mais precise morrer de fome nos bolsões de miséria que se multiplicam ao redor do globo. Não vejo manifestações que peçam o fim das mortes de escravos indianos e nepaleses nas suntuosas obras de Dubai. Não vi ninguém na zona sul carioca ou na Avenida Paulista revoltar-se contra as centenas de mortos em conflitos de questão fundiária ou pelos milhares que são mortos de forma violenta em nossas periferias.

Sinto pelos mortos. No entanto, je reste le même.

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Fernando Grisolia é jornalista