Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A produção da morte

Flexibilize as relações de trabalho. Ou precarize as relações humanas (os dois verbos, aqui, se tornam sinônimos). E ganhe de presente a guerra de todos contra todos, da qual falava o filósofo Hobbes. Numa sociedade sem nenhuma regulação, é cada um por si. Se a sua meta for produzir imagens que prendam o público, então, quanto piores forem elas, melhor será para seus índices de audiência.

É o que vemos em Abutre – filme que está em cartaz. Em Los Angeles, freelancers acompanham a frequência de rádio da polícia. Correm ao local de um crime ou acidente, para filmar imagens que tenham sangue, muito sangue. Depois as vendem para a televisão, que as difunde nos jornais do café da manhã. A quantidade de crimes está baixando, diz um deles, por isso essas imagens estão mais difíceis de obter. Aumenta seu valor de mercado. Elas ocupam mais de 90% do horário. Por isso, qualquer meio é válido para obtê­las. O melhor desses meios é a total indiferença à dor alheia. O que inclui, claro, o descaso pela ética.

Percebi desde o início que Louis Bloom, o personagem principal, era um anti­Rousseau. Foi Rousseau quem, no século 18, teorizou que nossa humanidade está na capacidade de sofrer com o sofrimento ou dor do outro. É o que ele chama de “piedade”, e Milan Kundera, no início de A Insustentável Leveza do Ser, celebra com o nome de “compaixão”: compartilhar o sofrimento psicológico ou a dor física de qualquer ser vivo, humano ou não. Rousseau considera insuficiente a tese de que o homem é um “animal racional”. O que nos humaniza é a piedade, não a razão.

Mais longe

É por isso que o sadismo, o prazer com a dor alheia, foram sendo postos, nestes últimos séculos, por assim dizer, fora da lei. Nenhum jornalista assina uma coluna celebrando­os. Mas a crueldade tem inúmeros fãs. Leiam em algum blog os comentários à execução do brasileiro na Indonésia. Há gente que goza com isso. Essa sensibilidade – ou insensibilidade – foi parar no lumpen. O lumpen­leitor brasileiro adora a dor dos outros e usa seu computador para teclar seu gozo. O lúmpen­espectador americano (ou brasileiro) também adora e dá audiência a programas que cometem a hipocrisia adicional de alertar que “haverá cenas fortes”.

A questão da piedade sempre surge para o jornalista, quando ele se defronta com uma tragédia pessoal. Agirá como jornalista ou como ser humano? Na posição humana, tentará salvar ou pelo menos minorar o sofrimento. Já como jornalista, relatará os fatos. Celso Russomano ganhou fama e se tornou político depois de filmar a via crucis de sua mulher pelos hospitais de São Paulo, que lhe negaram tratamento até ela morrer. Mas cabe aqui a pergunta: por que você não acudiu a sua mulher, em vez de ficar filmando? Ele teve de respondê­la muitas vezes.

Quem tem mais sucesso entre os abutres de LA é quem não gosta do ser humano. A certa altura, o assistente de Louis lhe diz: “Você não entende os outros.” Ele responde: “Não é que eu não entenda. Eu não gosto deles.” Tanto assim que, diante da morte de colegas, que faziam exatamente o que ele faz, não há piedade nem a questão óbvia – isso podia também acontecer comigo? só há a vontade de lucrar com a morte dos concorrentes, de acelerar, de ganhar.

Comecei dizendo que esse desastre humano ocorre quando se flexibiliza, ou precariza, a vida. Há mais. Louis lê tudo o que pode, na internet, sobre o espírito animal do empreendedor. Ora, esses discursos vagos, aparentemente anódinos, uma espécie de autoajuda para pequenos empresários, lhe permitem destruir os valores que sustentam a vida em sociedade. Louis Bloom faz uma pregação de pequeno empresário quando dialoga com seus dois principais interlocutores (na verdade, não dialoga: monologa, dita, exige). São eles o assistente em quem ele manda e a diretora de telejornal que no começo do filme manda nele, mas no fim terá que aceitar suas imposições – incluindo a de lhe entregar o corpo.

Aliás, o fim é significativo. Ela fica radiante com a nova delivery de imagens sangrentas – e mais ainda quando vê, no meio delas, a morte do assistente. Sem surpreender, esse momento choca: é quando ela cede a Louis tudo o que lhe foi pedido, como se um sacrifício humano selasse seu acordo, sua aliança.

Não se entrega com relutância, mas de toda a alma. Ele satisfez sua demanda no quesito desumanidade. Mostrou que podia ir mais longe que ela na recusa da compaixão. Ele a venceu – e a ganhou – na produção da morte.

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Renato Janine Ribeiro é professor de filosofia na USP