Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Devemos mesmo ‘ser Charlie’?

Sem nenhuma sombra de dúvidas, os assassinatos ocorridos na França em consequência da charge do jornal Charlie Hebdo devem ser lamentados, repudiados, assim como todo e qualquer assassinato – e todo e qualquer fanatismo. Nada justifica atos como aqueles. No entanto, esses episódios ocorridos em Paris despertam para uma série de debates. Um deles, acerca da liberdade de expressão. Sobre qual liberdade de expressão estamos nos referindo? A quem deve pertencer esse direito? Neste sentido, para provocar uma reflexão, outra pergunta se faz premente: devemos mesmo ser Charlie?

Para começar, um fato precisa ser registrado: há muito tempo, o mundo é ocidental, branco e cristão-judaico. Isso do ponto de vista político, econômico, cultural e religioso. E não podemos nos esquecer que essa hegemonia foi construída à consequência de muito sangue, suor e lágrimas. Os massacres realizados em nome da chamada civilização (ocidental, branca, cristã – e posteriormente judaico-cristã) estão registrados na história – obviamente, por suas origens, esses registros aparecem como “descobrimentos”, “conquistas”, “processos civilizatórios”, “defesa das instituições democráticas”. Os menos ingênuos e mais informados sabem que são eufemismos que pretendem velar os processos de imposição aos demais povos e culturas – a maioria através do uso de armas – dos valores e interesses (ocidentais, brancos, cristãos e posteriormente judaico-cristãos).

As Cruzadas podem ser exemplificadas como um marco nesse “processo civilizatório” que, em nome de um Deus – e de interesses econômicos e políticos –, eliminou pessoas. Outro exemplo mais recente é a criação do Estado de Israel, em 1948, que colocou a população palestina que ali habitava em situação de opressão, ocasionando esse processo que conhecemos – sobretudo através da mídia hegemônica – como “conflito palestino-judaico”. Tendo como justificativa a perseguição e vitimização genocida perpetradas pelos nazistas – abomináveis e inaceitáveis –, esse nosso mundo, que é ocidental, branco e cristão-judaico acata, aplaude e aceita as inúmeras atrocidades cometidas pelos israelenses contra o povo palestino, numa nítida desproporção de forças (tanques, aviões de guerra e outras armas altamente letais, contra pedras, rifles), cujo resultado de baixas é sempre diretamente proporcional a esse desequilíbrio de força. Ainda referente à questão judaica, é bom ressaltar que países africanos, como a Etiópia, por exemplo, abrigam milhares de judeus; mas estes, como não brancos, não são aceitos em Israel. Os judeus discriminados, massacrados, dizimados, segregam outros judeus. Mas essa questão sequer é mencionada pela mídia hegemônica, que também é ocidental, branca e judaico-cristã.

“Ser ou não ser Charlie” requer perspectiva crítica

Ao entrelaçarmos essas questões com as atrocidades que vitimaram jornalistas e outras pessoas este mês em Paris, vistas por uma considerável parte do mundo ocidental, branco e cristão-judaico como um “atentado à liberdade de expressão”, indagamos: quem tem liberdade para expressar-se? Não faz muito tempo, o prêmio Nobel de Literatura José Saramago foi execrado pelos judeus e chamado de antissemita por expressar seu descontentamento acerca da postura de Israel frente à questão palestina. Onde está a defesa da liberdade de expressão? Ou, será que essa tal de liberdade de expressão é privilégio de alguns?

Se observarmos os títulos de uma infinidade de matérias veiculadas pela mídia hegemônica, sobretudo nos canais de televisão, vamos perceber quão preconceituosas se apresentam, posto que não separam terroristas e fanáticos dos seguidores do islamismo. Os referidos títulos sempre fazem alusão ao “fanatismo islâmico”, ao “terrorismo islâmico”, entre outros, numa indicação de que os islâmicos são “fanáticos” e “terroristas”. É esta a liberdade de expressão que se quer defender?

Deslocando essa questão para o cenário nacional, é possível verificar como o Brasil é branco e cristão. Apesar de o país ser oficialmente laico (a partir da primeira Constituição Republicana, 1891), ainda convivemos com o domínio cristão. Não me refiro à escolha individual das pessoas, mas ao poder simbólico que representam os símbolos cristãos nos organismos públicos (federais, estaduais e municipais), ou o fato de, em muitas escolas espalhadas pelo país, antes de iniciarem as atividades letivas os estudantes serem obrigados a rezar o “Pai Nosso”? Portanto, a qual liberdade de expressão estamos nos referindo? Liberdade para quem?

Recomendo a leitura de: “Eu não sou Charlie, je ne suis pas Charlie”, contido no blog do teólogo Leonardo Boff (disponível aqui) e “Caricaturesca libertad de expresión en Francia” (aqui). É importante que nós, os que quase sempre ouvimos e defendemos as justificativas do mundo ocidental, branco e cristão-judaico, possamos ter acesso a opiniões diversas, a reflexões que deixem margem à formação de opinião embasada em informações que não sejam unilaterais.

Se decidirmos “ser Charlie”, que o façamos conscientemente, e não levados pelos apelos e, sobretudo, pelos interesses de determinados grupos; “ser ou não ser Charlie” requer reflexão, ponderação, bom senso, perspectiva crítica. O clamor pela liberdade de expressão somente poderá ser legítimo se essa liberdade for um direito de todos. Caso contrário, “ser Charlie” representará apenas uma forma de ratificar um mundo que, apesar dos inúmeros discursos acerca da diversidade, insiste em ser ocidental, branco e cristão-judaico.

******

Verbena Córdula Almeida é doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporâneo e professora adjunta de Letras e Artes da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC, Ilhéus, BA