Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Transgenicofobia e a morte secreta das abelhas

Seria mais um dia comum em uma colmeia. Abelhas operárias trabalham em uma harmoniosa perfeição cuidando de seus afazeres diários, quando de repente, sem nenhum grande motivo, todas as abelhas decidem abandonar a colmeia, deixando suas larvas para trás, para nunca mais voltar. Nenhum rastro de sua fuga é encontrado, nenhum corpo ao redor de sua colmeia. Um verdadeiro caso para os maiores detetives do mundo.

Esse estranho comportamento está sendo observado em diversos lugares do planeta e ficou conhecido como Síndrome da Desordem do Colapso da Colônia (colony collapse disorder). Os primeiros casos registrados dessa síndrome datam de 2006, sendo que nos EUA mais de 50 bilhões de abelhas sumiram durante os anos de 2006 e 2007. Outro evento alarmante ocorreu na Alemanha, no Vale do Reno, onde um grande número de abelhas foram encontradas mortas, com casos semelhantes também ocorrendo na França e na Itália. Graças ao papel extremamente ativo desses insetos na polinização das plantas, caso esse desaparecimento continue as consequências tornam-se incalculáveis no equilíbrio natural e na agricultura. Em virtude dessa eminente tragédia, surgiu um projeto de investigação da União Europeia chamado Bee Doc que contempla 11 universidades de nove países sob a coordenação do professor Robin Moritz, um dos maiores especialistas na matéria.

Desde as primeiras pesquisas, a redução da biodiversidade, o uso excessivo de pesticidas e a poluição são apontadas como as causas prováveis da Síndrome do Colapso das Colônias. Segundo Peter Rosenkrantz, da Universidade Honhenheim, seria uma sinergia entre vários fatores a verdadeira origem de uma doença ambiental que explicaria o fenômeno. Um dos grandes suspeitos para essa síndrome é o ácaro Varroa, oriundo da Ásia e que parasita as abelhas-melíferas do gênero Apis, alimentando-se dos fluidos corporais (hemolinfa), infestando tanto as abelhas adultas como as pupas e larvas. Também são um importante veículo na propagação de vírus entre as populações de abelhas. Sites de noticiais e conspiracionistas veicularam durante algum tempo noticias céticas sobre a correlação entre a varroose e a Síndrome do Colapso das Colônias, sendo a principal critica a enorme quantidade de ácaros necessário para provocar os danos observados. Mesmo uma evidente diminuição da imunidade das abelhas, o que fez alguns nomearem a doença de “Aids das abelhas”, foi tratada por conspiracionistas como mentiras da imprensa imperialista.

Para essas fontes de informação, os verdadeiros culpados pelas mortes das abelhas são exclusivamente as monoculturas impostas pelos projetos transnacionais e o uso desmedido de herbicidas. Para o caso das monoculturas, o consumo da biodiversidade e terrível limitação dos períodos de floração com pólen disponível se mostra um fator limitante para o desenvolvimento das colmeias, mas não explica a migração em massa das abelhas observadas durante a Síndrome do Colapso das Colônias. Esse fator com certeza poderia contribuir para um processo de extinção desses insetos e a queda de sua população, mas não parece ser a causa da síndrome. Já o uso desmedido de herbicidas e pesticidas é realmente um problema grave e pode dizimar colmeias inteiras, mas devemos lembrar que não existem corpos ao redor da colmeia que explique inicialmente o sumiço dessas abelhas.

Transgênicos, culpados sem julgamento

No final de 2014, uma notícia alarmante circulou na internet e foi repassada por diversos meios de comunicação pelo mundo: “37 milhões de abelhas morrem após o plantio de milho transgênico no Canadá” [1, 2, 3, 4, 5]. A notícia apresentava para a população mais um vilão que poderia ser responsável pela morte das abelhas, mas a diferença agora é que esse vilão seria condenado sem a necessidade de provas ou julgamento.

Essa suspeita não é nova e já havia sido apontada pela CartaCapital em 2007, no artigo Abelhas estão desaparecendo no sul do Brasil. A notícia aponta sem descrever os motivos que o uso de transgênicos, em especial os do milho Bt, poderia estar associado ao sumiço desses insetos. Para validar essa afirmação, a matéria diz que diversos países haviam proibido variedades transgênicas do tipo Bt, o segundo transgênico mais plantado hoje no mundo (fica atrás apenas da soja), mas não aponta os motivos relacionados a essa proibição. Ao fazê-lo, podem utilizar o fato como argumento positivo no caso das abelhas.

Sete anos depois e com a veiculação da morte de 37 milhões de abelhas, os transgênicos continuam sendo os principais suspeitos pelo ocorrido. Segundo a notícia, dezenas de milhares de abelhas morreram em Ontário após o plantio de milho transgênico. Um dos produtores da região identificado como Dave Schuit, teria denunciado ao site Organic Health que somente a sua granja teria perdido 600 colmeias, o que equivale a 37 milhões de abelhas. Com isso poderíamos afirmar que a causa “plantio dos milhos transgênicos” ocasionou o efeito “morte de 37 milhões de abelhas” e afirmar que o milho Bt realmente é um dos causadores desse grande mistério, conforme o título dessa matéria que tanto circulou na internet? A resposta é não.

Reviravolta no processo

Algumas das notícias que circularam pela internet apresentam o real suspeito para o óbito dessas abelhas, a utilização de neonicotinoides, especialmente o Imidacloprid e a Clotianidina (ambos da Bayer), que são inseticidas geralmente aplicados tanto em sementes como em tratamentos foliares e que penetram no pólen e no néctar. Esses inseticidas foram limitados legalmente em uma grande parte dos países da União Europeia depois que a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos definiu os riscos relacionados, mas ele circula livremente em outros países, como os Estados Unidos.

No meio dessa controvérsia, um estudo foi publicado na revista Proceedings, da Academia Nacional de Ciências, revelando que os pesticidas neonicotinoides provocam a morte de abelhas por danificar o seu sistema imunológico e as tornam incapazes de combater doenças e bactérias. Isso explicaria a evidente diminuição da imunidade das abelhas e tornaria a varroose muito mais grave, mesmo sem evidências claras sobre a correlação entre a varroose e a Síndrome do Colapso das Colônias.

Mas nesse momento deveríamos nos perguntar qual o papel dos milhos transgênicos nesse episódio. A resposta é extremamente simples: nenhum. Os neonicotinoides são utilizados em diversas plantações, tanto comuns quanto de transgênicas, e indiferente do tipo empregado no Canadá, ocasionaria o mesmo desastre ecológico visualizado. Graças à fobia e ao desconhecimento da população em geral, somados à ação de ativistas conspiracionistas, o fato de a plantação ser de transgênicos se mostrou uma ótima oportunidade para a aplicação de uma agenda negativa baseada tão somente em um título detrator que não correspondia com os fatos observados.

Alguns pontos como os diferentes genótipos de transgênicos são ignorados e a imagem de empresas como a Monsanto perante a população acabam direcionando uma visão de eterna desconfiança para o público em geral. Diversos artigos correlacionam a empresa ao desaparecimento das abelhas, sem apresentar grandes provas, como na citação abaixo:

“É evidente que a Monsanto está sob fogo sério devido ao seu papel no desaparecimento desses insetos vitais. É, portanto, bastante claro por que a Monsanto comprou uma das maiores empresas de pesquisa de abelhas do planeta.”

Outro ponto que não é citado em nenhuma das matérias é que grande parte da polinização do milho é feita pelo vento. Embora seja claro que as abelhas visitem as flores masculinas do milho, é improvável que o pólen por elas recolhido seja utilizado na polinização cruzada destas plantas, já que as flores femininas se encontram separadas das flores masculinas e não produzem néctar, não sendo, portanto, atraentes para as abelhas.

Estudos relacionados à infecção de abelhas por pólen dos milhos Bt vêm sendo realizados. Em estudo realizado por Trevisan et al., demonstrou-se que os efeitos ecológicos de uma possível ação tóxica do pólen Bt estão atualmente sem comprovação efetiva e que uma pressão de seleção de descendentes que poderiam tornar-se resistentes às proteínas transgênicas poderia ser passível de ocorrer em ambiente natural.

Finalmente o culpado é identificado

Desde 2009, existiam suspeitas de que a Síndrome do Colapso das Colônias seria causada por uma infecção por vírus que danificaria o código genético dos insetos. Esse vírus, que ainda não havia sido isolado, causaria modificações em 65 genes dos insetos – e isso estaria provocando o estranho comportamento das abelhas.

Um artigo publicado no mês de fevereiro de 2014, na revista Nature, lançou uma luz sobre a associação entre as doenças infecciosas emergentes das abelhas criadas comercialmente e as infecções entre abelhas silvestres. Mesmo sendo muito valorizada como prestadora de serviços ambientais, a abelha europeia Apis mellifera é exótica na maior parte dos países em que é empregada como polinizadora e produtora de mel. Seu intenso manejo nos apiários, que inclui até mesmo o transporte rodoviário para distantes campos onde as floradas são exploradas comercialmente, leva ao estabelecimento e disseminação de doenças infecciosas, como ocorre com outros animais de produção sob o regime de criação intensiva. Some a esse problema a transmissão desses agentes infecciosos emergentes para abelhas silvestres, que pode ocorrer pelo ácaro Varroa e a varroose. O resumo do artigo citado pode ser lido abaixo:

“As doenças infecciosas emergentes (EIDs) representam um risco para o bem-estar humano, tanto direta (1) como indiretamente, afetando animais de criação (gado, mas também abelhas e peixes) e os animais selvagens que fornecem recursos valiosos e serviços ecossistêmicos , como a polinização de culturas (2). A abelha (Apis mellifera) é o inseto polinizador de colheita mais manejado do Mundo e sofre com as doenças provocadas por uma gama patógenos de alto impacto, emergentes e exóticos (3,4), tornando necessário um manejo proativo das populações de abelhas pelos apicultores para controlar estas doenças. Polinizadores, como abelhas silvestres (Bombus spp.), estão em declínio global e uma das causas pode ser o spillover de patógenos dos polinizadores, como as abelhas em apiários (5,6) ou colônias comerciais de mangangavas, para as espécies silvestres. Neste artigo usamos uma combinação de experimentos de infecção em laboratório com dados colhidos em campo em escala de paisagem para mostrar que as doenças infecciosas emergentes de abelhas são responsáveis pela presença de fato de agentes infecciosos de forma generalizada entre o conjunto de polinizadores. A prevalência do vírus deformador da asa (DWV) e do parasita exótico Nosema ceranae em abelhas e zangões está ligada; como a DWV tem maior prevalência entre abelhas e as mangangavas e outras abelhas melíferas simpátricas estão infectados pelas mesmas cepas de DWV, a Apis é a provável fonte pelo menos desta importante EID em polinizadores silvestres. As lições aprendidas com vertebrados (7,8) apontam para a necessidade de maior controle de patógenos em abelhas de apiários para a preservação dos polinizadores selvagens, uma vez que quedas nas populações de polinizadores nativos podem ser causadas por transmissão de patógenos provenientes de polinizadores manejados comercialmente” (M.A. Fürst et al., “Disease associations between honeybees and bumblebees as a threat to wild pollinators”, Nature, 506:364-66, 2014).

Apesar da possibilidade de colmeias de abelhas comerciais serem tratadas contra o vírus deformador da asa (DWV) com pesticidas, não há nenhuma maneira de tratar abelhas selvagens, já que se torna impossível saber aonde suas colmeias se encontram.

Um alerta contra transgênicofobia

O caso das abelhas é um bom exemplo de como a falta de conhecimento sobre determinado tema e a disseminação de informações conspiracionistas sem grandes evidências podem se espalhar e se tornar ou aumentar o preconceito com uma área do conhecimento científico.

Enquanto diversos ativistas conspiracionistas apresentam ataques sem grandes evidências contra os transgênicos e seguem argumentando que as abelhas estão morrendo por causa das plantas geneticamente modificadas, as mesmas continuam morrendo de doenças infecciosas emergentes e transmitindo seus patógenos para importantes polinizadores silvestres. Esse fenômeno pode ser agravado pela utilização de pesticidas do tipo neonicotinoides, que diminuem a imunidade das abelhas, e pela varroose que debilita esses insetos e se tornam uma ótima forma de disseminação de doenças entre as populações comerciais e silvestres. O problema como defendido pelos pesquisadores da Bee Doc se mostra multifatorial, mas não aparenta ter ligações com as plantas transgênicas. Além desses, existem outros fatores que podem estar associados a essa praga, como à radiação dos telefones celulares. A radiação emitida poderia interferir no sistema de navegação das abelhas, provocando a desorientação observada e impossibilitando o retorna à colmeia. Além disso, pesquisas apontam mudanças de comportamento de abelhas nas proximidades de linhas de transmissão de alta tensão.

O sumiço das abelhas é um problema real e imediato que deve ser tratado com total seriedade, pois poderia provocar a extinção de muitas espécies de plantas que são polinizadas exclusivamente por estes insetos. Esse problema também ocasionaria o desaparecimento de outros animais associados a estas plantas. Um problema que deve ser tratado pelos ecologistas.

Mas a mortandade de abelhas não deve virar um evento de transgênicofobia patrocinado puramente por notícias capciosas e disseminação de desinformação entre o público leigo. Essa promoção acaba gerando movimentos sociais que interligam efeitos a causas completamente incorretas, como o evento “Marcha pelas abelhas – Contra Transgênicos“. Os fatos não eximem empresas como a Monsanto, Bayer, Syngenta, Dupont, entre outras, de diversos crimes contra o meio ambiente, mas não se deve utilizar isso como resposta final e simplista sem a existência de evidências. O ceticismo com relação aos transgênicos é extremamente proveitoso e deve ser incentivado para que pesquisas sejam feitas de forma séria e possam trazer cada vez mais benefícios para a humanidade, assim como ocorre na indústria farmacêutica. Esse mesmo ceticismo não deve ser utilizado de forma leviana para invalidar pesquisas sérias baseados apenas em opinião e informações conspiracionistas, promovendo a desinformação. Mas essa desinformação pode ser culpa dos próprios pesquisadores que não conseguem transmitir de forma simples e direta detalhes sobre suas linhas de pesquisa e apresentar realmente como a biotecnologia pode auxiliar no desenvolvimento social e politico. Culpa de um analfabetismo científico que cresce no mundo todo.

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Fabiano B. Menegidio é biólogo, bioinformata e mestrando em Biotecnologia e Henrique P. Rufo é biólogo