Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A adoção portuguesa, ora pois

Vários críticos do Acordo Ortográfico, não sem razão, dizem que houve pressa excessiva do Brasil na sua aplicação e que Portugal, mais prudente, demoraria a adotar ou não chegaria jamais a aplicar os pequenos ajustes da reforma na escrita da língua portuguesa.


A Agência Lusa começou a aplicar o Acordo no último dia 30 de janeiro. E os jornais Expresso e Diário Económico anunciaram naquele mesmo dia que vão adotá-lo nos próximos meses, ainda que tenha parecido esquisito o anúncio, escrito na forma antiga: ‘Faz sentido a comunicação social portuguesa adoptar o Acordo Ortográfico. O Expresso vai, seguramente, adoptá-lo e só ainda não o fez porque temos alguns problemas técnicos relacionados com o sistema editorial e com o corretor ortográfico que estamos neste momento a tentar superar.’


Assim falou Henrique Monteiro, diretor do semanário Expresso. António Costa, diretor do Diário Económico, disse que o jornal deverá adotá-lo até o final do primeiro trimestre deste ano. ‘A tentar superar’: os portugueses são arredios ao gerúndio, mas o Acordo não mexe nisso, já que é apenas ortográfico. Outro importante jornal português, O Público, ainda não definiu prazo para aplicá-lo.


A internet para ensinar


Quando se fizerem as avaliações dos primeiros tropeços havidos na mudança de hábitos, ver-se-á como foram importantes estes três passos portugueses, não apenas pela influência da mídia sobre a língua portuguesa, mas porque são três instituições respeitáveis que demonstram receptividade a um tema que vinha tendo apenas o Brasil em solitária liderança na aplicação das novas normas.


Portugal já tinha sido pioneiro no assunto e dado um bom exemplo com o Dicionário da Língua Portuguesa 2009 (Porto, Porto Editora, 1.675 páginas), acolhendo ambas as grafias, de antes e de depois do Acordo, marcando os verbetes com AO e com DAO, respectivamente. Mas, claro, ao indicar o e-mail da Porto Editora para contatos, indicou www.portoeditora.pt/contactos


Na verdade, no Brasil os mais antigos ainda pronunciam ‘contacto’ em vez de ‘contato’. E os dicionários brasileiros dividiam-se e ainda se dividem diante da grafia de palavras com consoantes mudas, como é o caso. Quatro dos mais consultados dicionários têm registros discrepantes destas ocorrências. O Houaiss registrava e registra apenas ‘contato’, apresentando o verbete ‘contact…’ e remetendo o consulente para ‘contato’ somente, sem registrar ‘contacto’. Aurélio e Michaelis dão as duas formas, ‘contato’e ‘contacto’. O Aulete Digital registra as duas formas, mas em ‘contacto’ manda ver ‘contato’.


No Brasil, a galáxia Gutenberg ainda é uma utopia para milhões de pessoas, apesar dos avanços consideráveis na leitura, não apenas de livros ou de jornais impressos, mas principalmente na internet. Assim, são poucos ainda os que se valem da leitura e da escrita como instrumentos políticos em sentido pleno: para exercer a cidadania, não apenas como eleitor, mas como leitor, o que mudaria radicalmente o perfil e a prática de quem vota manipulado por interesses locais ou circunstanciais.


De todo modo, a prova dos noves poderá vir já nas próximas eleições, pois há alguns anos a internet tornou-se via de acesso de grande repercussão em denúncias, informes, atualizações etc., sem contar que, embora a grande mídia silencie muito sobre esta questão, tanto o ensino médio como o superior e a pós-graduação, em lato sensu (especializações) e em stricto sensu (mestrados e doutorados), têm recorrido à internet para ensinar. Assim, no Brasil, o Acordo deve muito de sua aceitação à forma ampla com que ele vem sendo discutido e comentado nesses meios.


Todos são iguais perante a lei


Portugal deu-nos a língua portuguesa, pela qual o Brasil será eternamente grato, mas a ousada e heroica nação lusitana precisa reconhecer que esta liderança não lhe cabe mais e deve ser compartilhada, não apenas conosco, mas também com as nações africanas lusófonas e outros nichos mundiais onde o português é falado e escrito. Nossa luta comum, de todos nós, lusófonos, é derrotar de uma vez por todas nosso inimigo número um, o analfabetismo, que continua a incentivar doenças, mal-estar, alienação e outros males seculares, pois numa democracia ninguém se pode queixar do soberano, o povo.


Deve ter sido Pedro Calmon quem mais divulgou no Brasil o conselho do escritor e político Domingo Faustino Sarmiento, fundador do diário La Nación, ainda em circulação, e presidente da Argentina entre 1868 e 1874: ‘O povo é soberano. Eduquemos o soberano’. Omitem com frequência o sobrenome Albarracin, de sua mãe, Paula, mas ela teve importância decisiva na formação desse prestigioso intelectual, jornalista e estadista. Quando presidente da república, dobrou o número de escolas públicas na Argentina e construiu mais de cem bibliotecas.


Nos tempos que correm, a mídia, sobretudo com a internet, tornou-se grande aliada da educação. Para isso, é indispensável que nos entendamos sobre a forma de escrever.


Todos são iguais perante a lei. Ora, as leis são escritas de acordo com o Acordo, embora ainda haja prazo para tal atualização.


Que o exemplo de Sarmiento inspire os estadistas das nações lusófonas.

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Escritor e professor da Universidade Estácio de Sá e doutor em Letras pela USP; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e De onde vêm as palavras