Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A arte e a revanche da miséria

Enquanto marginais transportam dinheiro podre entre malas e cuecas, tenho pensado noutra coisa, mais especificamente na família Tranchesi e no conceito ‘Daslu’. Talvez a afirmação em tom de profecia do senador Arthur Virgílio, sobre a tentativa do governo de desviar a atenção do ‘mensalão’ com a presepada envolvendo pessoas tão refinadas, tenha-se confirmado ao menos comigo. Estou mesmo pensativo, sensibilizado, até, com o ocorrido, mas vejo tudo com bons olhos e tenho um carinho, uma admiração e um quase agradecimento por esse povo très chic.

Quero relembrar, antes, um conceito fundamental da Estética, especialmente depois de Plotino, sobre a importância da arte como representação da realidade, e não como simples retratação da mesma. Uma obra de arte tem como pressuposto a representação de uma idéia, de um princípio, de um mito, e não exatamente a retratação da verdade, aí incluídas naturezas que vão das pinturas de Goya aos espetáculos de música punk. Segundo este conceito, a verdadeira arte se debruça no envolvimento entre espectador e obra, uma interação, uma interpretação muito particular. Daí porque seja tão difícil considerar artísticas aquelas gravuras de frutas nas velhas toalhas de lona dos nossos botecos tão amados.

Penso que o espetáculo promovido na ‘Babilônia da moda’, na ‘Sodoma do luxo’, no ‘Olimpo dos chiques’, ou dizendo com muito mais glamour, na loja Daslu (a partir de então removo as aspas em prol do conceito), tenha esse substrato artístico. Fica mais fácil perceber essa característica se acompanharmos as notícias nos jornais. Ater-me-ei apenas às manchetes online do jornal Folha de S.Paulo, especialmente ao conteúdo aberto do veículo. As referências aqui mencionadas podem ser facilmente encontradas com a ferramenta de busca do site da Folha, pela chave ‘daslu’, obviamente.

Vocação antiga

Ainda no início de junho alguns media saltitavam pelas redações, com suas fotografias e textos lambuzados de luxo e riqueza como não os imaginaria talvez nem mesmo o Joãozinho Trinta. Entre brilhos e farrapos, estes rememorados pelas sempre inconformadas e realistas alas ‘esquerdistas’ (sic) das redações, saltou aos olhos o comentário do jornalista Alcino Leite Neto, ressaltando o que penso ser a verdadeira vocação de nosso cenário em discussão. Na seção ‘Pensata’, o jornalista mencionava algumas das discrepâncias levantadas, inclusive, por outros veículos (fonte não mencionada que se baseou em pesquisa do IBGE), como o fato de que a renda de todo o ‘Coliseu’ pudesse comprar apenas um par de calças no novo ‘Olimpo’, clara demonstração de que os deuses têm mais poder que os homens, ainda que da casta dos guerreiros. Tratamos, no caso, da Favela Funchal, Rua Coliseu, Vila Olímpia, nos fundos da Daslu.

A manhã seguinte à festa de inauguração premiou com uma intoxicação, devida supostamente ao ‘feijão com farofa’ degustado nos bastidores, os garçons que estiveram a servir ‘ambrosia e hidromel’ durante todo o evento. O bufê responsável defendeu a qualidade da comida do proletariado, especialmente no respeito pelo ente humano que deve haver num ambiente très très chic comme ça. Já no início de julho, manifestantes defenderam as peles, não as próprias, mas dos animais, em frente ao tal palco, confirmando a vocação do local como praça de eventos públicos em defesa da igualdade social e, neste caso específico, animal.

Tal representatividade ecoou até na mídia internacional, primeiro num daqueles jornais que somente os próprios jornalistas conhecem – The Christian Science Monitor – e dias depois no também chic, mais non ‘très’ comme la Daslu, The New York Times. Relembramos tais fatos apenas para destacar que a vocação era antiga, tanto mais por se basear em mitos tão consagrados quanto a própria riqueza, a despeito da pouca idade do novo palácio.

O que o povo quer

Sem pormenorizar a parte da história que muitos conhecem, sobre as peripécias envolvendo a prisão dos proprietários e o disse-me-disse entre fiscais esfuziantes e empresários revoltados com a proximidade da ‘bala certeira’ da Polícia Federal, vale ressaltar o tom de clímax da esplendorosa epopéia a que estavam destinados a Daslu e seus donos. Mencionada como católica praticante e sem dúvida uma bela mulher, a empresária Eliana Tranchesi passou da volúpia midiática de um grande salto em sua carreira empresarial para a situação algo constrangedora de se ver em meio a investigações e depoimentos na Polícia Federal. Eis a retomada do tema clássico da heroína perseguida pela ira e pela inveja, uma quase Desdêmona, por assim dizer. Apesar do susto, a revolta da Fiesp com a ‘pirotecnia’ policial não esmaeceu a compreensão do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, nem do secretário da Receita, Jorge Rachid, quanto à função catártica do evento, fato comprovado pela Folha em reprodução de seus possíveis comentários sobre aumento na arrecadação fiscal para este ano ou a corrida de empresários ao ajuste de contas.

À parte a representação, a verdade é que a Daslu é uma evolução natural do Brasil, o ápice pormenorizado da entropia de nosso sistema de desigualdade histórica, o topo da pirâmide social em cotidiano regado a Veuve Clicquot. Nada mais evidente que flagrar a mesma desigualdade promovendo sua simbologia particular. No Movimento Armorial se busca – ou buscava – a produção da arte erudita, operada por uma elite cultural (e não econômica), a partir de raízes populares; o refinamento da arte a partir da matéria bruta da cultura popular. Pois a Daslu é a antítese absoluta do Armorial, a incorporação supranacional dos valores alienígenas para elaboração de uma nova elite, sem raízes, sem substrato, sem cultura, extrema e absolutamente superficial, porém muito mais light, fashion, in, chic.

‘O povo gosta é de luxo; quem gosta de miséria é intelectual’, citando novamente o carnavalesco e já quase filósofo Joãozinho Trinta, pelo que temos a constatação curiosa de que a Daslu oferece exatamente o que o povo quer. Concluímos facilmente que se trata de uma loja de artigos populares, feita para satisfazer os desejos inatingíveis do populacho mais suburbano que se possa imaginar, pois que o intelectual (relativo a intelecto, inteligência, ou seja, gente que costuma pensar) não é um Daslu e gosta mesmo é de analisar a miséria humana, preocupar-se com descalços, famintos, marginalizados, enfim, gente que n’est pas chic. O aparente diferencial daquele ambiente está na sua representação como superior à realidade, talvez até da mortalidade. Mas como arte e realidade são coisas distintas, podemos concluir, agora realmente, que se a função é satisfazer o desejo popular, há pouca ou nenhuma diferença conceitual entre esta loja tão famosa e a Feira da Sulanca, que até já ganhou música, ao contrário da outra.

Alvo fácil da ostentação

Pagar trinta reais por estacionamento é confirmar a realidade pela representação de tese e antítese de consumo, frente e verso da Vila Olímpia; é o endosso da arte da luxúria (relativo a luxo?) alimentando os desejos do povo brasileiro. Aqui celebramos o orgulho em saber que muitos de nossos publicitários conseguem tirar leite de pedra, sendo gente inteligente, mas não necessariamente intelectual, pois quem propaga o desejo por calças de milhares de reais não parece se importar tanto com pobreza e miséria.

Se a Daslu é nosso palco, se a mídia é nossa ágora, faz sentido resgatar os ensinamentos da Estética, respeitando em conceito os pressupostos artísticos da emblemática consumista. Se samba e maracatu têm importância para o enriquecimento de nossa cultura, marcas estrangeiras de nomes impronunciáveis têm também sua validade como antítese fundamental, elemento crucial para a verdadeira catarse que operamos ao vislumbrar as perdas e ganhos dos muito ricos.

Tenhamos, pois, benevolência com todo o episódio, sem anedotas baratas, achaques ou veleidades. Seja feita a justiça, sejam feitas as intervenções e que sejam, sim, evidentes, efusivas, até pirotécnicas como dizem alguns, não para a vergonha dos ricos-coitados, tão perseguidos pela inveja revoltosa, mas porque de festa, barulho e holofotes é que se compõe um espetáculo para multidões. Se a coerção legal tenta desviar o foco do ‘mensalão’ para a megaprodução observada na invasão dos mortais ao ‘Olimpo do consumo’, proliferam em silêncio milhares de pequenas invasões bárbaras aos demais recintos do luxo, dos carros blindados e caros às centenas de condomínios fechados e seus não raros adolescentes psicopatas, empregados assassinos e casais depressivos.

A revanche da miséria chega com a força de uma praga divina. Ramsés, um dos mais poderosos faraós que o Egito conheceu, sofreu na unha de Deus o preço da infâmia, um mito trágico que serve até hoje como mote de absoluto poder para a criação artística. Como a entropia é coisa inevitável em qualquer sistema, tenhamos não apenas compaixão pelos sócios da Daslu, como fazem tantos ‘pobres meninos ricos’, mas guardemos sincera e verdadeira admiração pelo seu papel, pela sua coragem em desempenhar num país tão desigual o alvo fácil da ostentação, da pompa abundante e quase vexatória. Se desfilar riqueza no Brasil é coisa arriscada, ser um Daslu é uma espécie de sacrifício épico, une attitude trés chic, pour le bien de l’Art.

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Analista de sistemas, estudante de Filosofia