Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A boca grande do presidente

O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, fala pelos cotovelos desde o tempo em que era apenas o irmão do Chico, aquele que um dia o Partido Comunista Brasileiro sonhou transformar em quadro avançado do sindicalismo. Dizem velhos companheiros que, por tagarelar demais, espantando os peixes, Lula foi atirado para fora de uma canoa por seu pai, quando pescavam, ele ainda menino, na Baixada Santista. Foi salvo por Chico.

Era Chico também quem tentava mantê-lo calado quando o aparato de informações do governo militar começou a perceber que os metalúrgicos do ABC paulista destoavam da escumalha peleguista plantada na maioria das organizações sindicais do país. Lula era secretário do sindicato, assumiu a presidência em 1975, rejeitou todas as tentativas de cooptação da esquerda clássica e foi parar no Planalto. Sempre falando pelos cotovelos. Chico, sempre fiel ao ‘Partidão’, ficou apenas para as relações fraternas.

Lula colheu muitas vitórias no sindicalismo, liderou a resistência ao regime militar onde ela era mais eficiente – no coração da indústria paulista – e ofereceu à política nacional uma agremiação partidária única em sua história. Passou vinte anos viajando pelo país, sempre verborrágico e pródigo em metáforas capazes de explicitar para o mais simplório dos ouvintes suas idéias de bom governo.

O presidente da República faz um bom trabalho, a julgar pelas manchetes dos jornais. As decisões que toma ou que avaliza na condução da economia têm produzido textos otimistas na grande imprensa, repercutem na redução da percepção de risco dos investidores internacionais e contribuem para a crescente credibilidade do país. O chamado mercado, essa instituição etérea que se corporifica nas linhas impressas, adora sua política econômica. E ele segue falante.

Na quinta-feira (24/2), Lula outra vez se deixou levar pelo ímpeto verbal e ofereceu à imprensa e à oposição um prato cheio, ao alardear, como quem confidencia em off, ter ordenado a um ‘alto companheiro’ que se omitisse diante de evidências de irregularidades do governo anterior. O quadro de trapalhadas se fechou por graça do ex-presidente do BNDES, Carlos Lessa, que revelou ter sido ele o interlocutor citado, embora ressalvando que o presidente havia exagerado ao contar o caso.

O PSDB anunciou que vai à Justiça; o senador Jefferson Peres (PDT-AM) aproveitou para fazer blague, lançando dúvidas a respeito da sobriedade de Lula; o líder dos tucanos no Senado, o amazonense Arthur Virgílio, falou em impeachment. A imprensa registrou o bate-boca com equilíbrio surpreendente, mas não entrou como devia na análise do discurso presidencial: afinal, Lula disse ter desautorizado investigações ou simplesmente pediu a Carlos Lessa que evitasse envolver o BNDES em polêmicas no início do governo?

Seu discurso, transmitido pela televisão, e as transcrições apresentadas pelos jornais permitem as duas interpretações. Mas no reexame do discurso, feito na redação de pelo menos dois grandes jornais, cresceu a versão de que o presidente manifestava essencialmente sua preocupação em evitar especulações sobre a capacidade do banco de fomento de responder à instabilidade que tomava a economia do país em 2003.

A confusão, diria o próprio Lula, nasceu de um discurso que saiu ‘atravessado’. Ainda assim, a imprensa seguiu repetindo a versão publicada na sexta-feira, de que Lula teria confessado haver acobertado corrupção no governo FHC.

Razões ponderáveis

Rigorosamente alinhados, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, O Globo, Jornal do Brasil e Correio Braziliense registraram o discurso infeliz e as reações oposicionistas. Notas oficiais, as costumeiras declarações de lado a lado, destaque para frases mais ou menos maldosas e o desfile costumeiro das personagens de sempre marcaram a cobertura do episódio.

Sobre o tema original – irregularidades nos processos de privatização – pouca ou nenhuma luz. Mas o Estadão, cuja orientação editorial desautoriza qualquer suspeita de simpatia com o atual presidente, alocou discretamente na página A14 do primeiro caderno (domingo, 27/2) o resultado de consultas da repórter Vera Rosa, em colaboração com Tânia Monteiro, dando conta de que o discurso de Lula havia sido combinado em reunião ministerial, como um recado para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, tido como principal patrocinador da eleição do deputado Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara.

Vera Rosa, experiente e versada nos meandros da política, revela que não teria sido Carlos Lessa, mas o ex-presidente da Eletrobrás, Luiz Pinguelli Rosa, o ‘alto companheiro’ citado no discurso atravessado de Lula. A Folha deu seguimento à versão original da história, oferecendo um quadro com as possíveis conseqüências legais do discurso presidencial; o Jornal do Brasil baixou o tema para submanchetes e O Globo aparentemente decidiu enterrar o assunto. Não se sabe se por haver feito melhor avaliação do discurso ou por ter preferido evitar polêmicas em torno do BNDES, de cujos cofres a empresa que controla o grupo dos Marinho já colheu generoso auxílio em 2002, com a bênção pessoal do então presidente FHC.

A impressão que fica para o observador é de que o prato oferecido pelo ‘discurso atravessado’ foi um presente tão inesperado, uma bola tão caprichosamente lançada por Lula contra a pequena área de seu próprio time, que a imprensa não soube chutar a gol. Ou – hipótese muito perigosa – talvez nossos principais jornais estejam considerando que, de tanto chutar contra sua própria meta, com regular auxílio de seu partido, o presidente se encontrasse na condição daquela figura que, nas brincadeiras infantis, se chama costumeiramente de ‘café-com-leite’.

Artigos e editoriais lamentaram e condenaram o vício presidencial do destempero verbal, apontando, com razões ponderáveis, que Lula precisa refrear seus impulsos diante do microfone. Mas foi pouco. Faltou ir um pouco mais fundo, esmiuçar as origens desse vício, exigir mais responsabilidade do governo, incluídos o presidente, seus auxiliares da área de comunicação e de protocolo, e principalmente os ministros que compõem o ‘núcleo duro’ do Executivo.

Fogo no circo

Se de fato o discurso foi combinado na reunião ministerial, como informa o Estadão, o tema precisa ser requentado a partir desse ponto. Em variadas ocasiões o grupo mais próximo do presidente – e ele próprio – já demonstrou desconhecer o funcionamento da mídia no país.

Se a cada gol contra o governo se apressar em desdizer o que foi dito, acabará o cidadão comum entendendo que as palavras do presidente não devem ser levadas completamente a sério. Estaria, então, a imprensa, contribuindo para desacreditar a mais alta magistratura da nação, que, de resto, o estilo ‘populista’ – para não faltar ao respeito – do atual mandatário não ajuda a engrandecer.

A eventual contemporização com a incontinência do presidente não ajuda o país, mas serve aos propósitos de poder dos que apostam num fracasso do atual governo – e entre eles se alinham não poucos barões da imprensa. Em algum momento de sua vida, Luiz Inácio Lula da Silva precisa entender que não é mais o irmãozinho do ‘frei’ Chico, que também não está nas portas das fábricas, que o tempo das empolgantes assembléias no estádio de Vila Euclides já passou.

Em qualquer empresa séria, nenhum executivo se aventura a manifestações públicas sem repassar seu discurso diante de um assessor especializado. As palavras, o tom, a postura e o olhar são ensaiados, estudados e os vícios corrigidos na medida do possível, para evitar mal-entendidos. Todos eles carregam em suas pastas uma camisa de reserva para o caso da transpiração excessiva ou para superar um acidente prosaico com uma xícara de café. Não se vê um deles se apresentar suarento, como o presidente da República no evento que deu causa à crise.

Repórteres que acompanhavam o evento contam que Lula se enxugou com uma toalha várias vezes e fez sinal para o chefe da segurança avisando que tiraria o paletó – que esconde o colete à prova de balas. Quem o conhece sabe que ele sempre foi de transpirar demais. Como nem sempre é possível trocar de camisa, recomendam os especialistas em imagem pública que sejam escolhidos tecidos e materiais que dissimulem a transpiração.

Se o presidente é do tipo que não ouve recomendações dos assessores, é preciso que a imprensa deixe claro que o país não pode correr o risco de uma turbulência institucional porque ninguém diz ao chefe do Executivo que suas metáforas são pobres, que seus bordões já não sensibilizam ninguém, que passou da hora de evoluir da fase oral.

As atribuições do cargo ao qual ele foi conduzido pela maioria inconteste da população – e que, a julgar pelas últimas pesquisas CNT-Sensus, ainda o apóia – incluem a capacidade de calar quando o pensamento implica riscos. Se não está entre suas habilidades naturais o bom senso de refrear a língua, que seus conselheiros reduzam as oportunidades para os deslizes. O que não pode seguir acontecendo é o presidente fornecer combustível para os que sonham em ver o circo pegar fogo.

******

Jornalista