Wednesday, 01 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A celebração da diversidade

E de repente chegaram os primeiros comentários. Alguns identifiquei logo de cara como pessoas amigas, assíduas em manifestar generosidade, apreço e outras coisas boas ante meu texto sempre inacabado. As primeiras duas dúzias seguiram nesse ritmo. Mas, então, como contraponto aquela tendência de unanimidade (sempre marcada pela falta de luzes no intelecto) começaram a aparecer alguns poucos comentários tímidos, respeitosos porém discordantes da tese que levantava de que, como filhos de Deus, também merecemos um pouco de celebração já que a vida é curta para ser pequena.

Três dias depois de disponibilizado nesteObservatório, o volume de amigos que fizeram comentários ao texto ultrapassava já a centena [ver ‘Indiferença em vez de otimismo‘]. Havia despertado paixões. Em poucos dias o autor esteve às portas de ganhar o Nobel de Literatura e frequentou também a ante-sala dos infectados com nacionalismo piegas, essa doença de nossa infância política.

Leitores encontraram motivações que me eram inteiramente despercebidas. Para dois ou três mais afoitos o que me movia o pensamento era o desejo de viver em um país dos sonhos, sem criminalidade, sem corrupção, sem sofrimento de qualquer espécie. Já outros me emocionaram com declarações de que ficaram com olhos marejados varados pela emoção. Meia dúzia encontrou no texto razões para se sentir melhor brasileiros, gente otimista e de bem com a vida enquanto outro tanto reclamou da ausência do presidente Lula em uma moldura estilística que lhe caberia à medida.

Experiência instigante

Nesse vai-e-vem de percepções encontrei leitores repercutindo o texto a torto e a direito quase como peça publicitária de uma campanha presidencial ainda incipiente nestes meses finais de 2009. Dezenas de sites e blogues criaram uma rede de proteção ao texto e não deixaram nem mesmo de adorná-lo com logomarcas, charges, lideranças políticas.

A verdade é que os leitores me ajudaram a me entender – se é que me entendem. Entendi que cada um vê no texto o quer ver e ponto final. Compreendi que há uma distância imensa entre intenção e gesto. Percebi que ficamos muito sofisticados na apreensão da linguagem escrita: qualquer afirmação traz consigo sua negação e o desejo de interagir com o autor é tão intenso que não dispensa arroubos de viva aceitação e sinais veementes de repúdio.

Não se aceitam mais livres pensadores, essa gente que ainda se atreve a cometer o pecado de pensar. Os leitores exercem com acentuado prazer o ofício do entomologista. E o que faz o entomologista? Estuda os insetos, analisa sua morfologia, fisiologia, comportamento e genética. É nesse sentido que vejo o leitores catalogar minha posição ideológica, classificar meu pensamento como animal político, estabelecer para que serve meu pensamento, que ‘usos’ esses podem ter se ‘olhados’ por quem os usa.

Creio que a vasta maioria dos que escrevem nesteObservatório o fazem movidos pelo desejo de comunicar algo e fazem a conspiração que reúne pensamento, linguagem e experiência de vida. Ocorre que, quando estou escrevendo, não consigo me imaginar tramando um texto para potencializar esta ou aquela tendência político-partidária. O próprio verbo tramar me deixa desconfortável, creiam-me.

As palavras, por mais esticadas que sejam, não conseguem trair o pensamento do autor. Este as escolhe como faria um apreciador de pedras pequenas à beira-mar: pega uma, deixa-lhe correr na palma da mão e então emite seu veredicto: esta fica comigo e entra em minha coleção enquanto aquela outra é logo descartada, escapa da mão e regressa ao ambiente que a gerou. O mundo está mais afeito às classificações ou nós é que não resistimos ao trabalho fácil e reducionista de classificar de coisas a pensamentos, de insetos a pessoas?

Seguindo esse livre-pensar, logo estaremos portando nas mãos, no lugar de aparelhos celulares, pequenas fichas na forma de etiquetas. No lugar de ligar o celular para conversar preencheremos etiquetas e vamos etiquetando o mundo e seus habitantes. Passaremos a usar uma planilha de cores vibrantes e agradáveis aos donos de pensamentos que têm mais afinidade com nosso modo de ver o mundo e colocaremos as cores frias e muito fortes, osdegradées de cinza, nos que pensam muito diferente da gente.

Pronto, temos diante de nós o desafio da alteridade, da percepção do outro e com isso a percepção da rica diversidade que constitui o patrimônio maior de espécie humana. Se somos gentis, amáveis apenas com aqueles que pensam de maneira similar à nossa, estamos traindo todo o jogo da vida pois optamos por encontrar nosso pensamento refletido no outro. O contrário, infelizmente, é a mais pura verdade. Rejeitamos o que não encontra eco na gente e nos privamos da mais instigante experiência na vida, a que leva ao encontro das diferenças e à celebração da diversidade.

Ser feliz

O texto ‘Indiferença no lugar de otimismo‘ é assertivo da primeira à última palavra e representa meu pensamento da forma mais clara que consegui expressá-lo quanto à escolha do Rio de Janeiro pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) para sediar os Jogos Olímpicos de 2016. Usei apenas pedrinhas escolhidas, pedras que catei à beira-mar do pensamento, pedras que uma vez rolando na palma da mão não voltaram a seu lugar de origem, ficaram comigo e foram usadas de forma generosa ao longo do texto.

Embora sinta que o mesmo pareceu possuir os efeitos terapêuticos de óleo de fígado de baleia, aquele bálsamo milagroso que curava, nas feiras de Natal e de Caruaru, de unha encravada a infarto do miocárdio, entendo ser justo declarar que:

** expressar meu amor pelo Brasil não me alinha automática e irrestritamente ao governo do momento, seja ele qual for;

** decretar uma ou duas semanas de celebração particular pela vitória em Copenhague dos 190 milhões de habitantes do Rio de Janeiro não significa que a taxa de homicídios no país baixa a zero, como também não baixa a menos zero a existência dessa que é a pior enfermidade do caráter humano: a corrupção, sem adjetivos, substantivo mesmo;

** sentir emoção depois de ouvir o nome Rio de Janeiro, pronunciado com sotaque mexicano ou colombiano, pelo presidente do COI Jacques Rogge no dia 2/10/2009, não é o mesmo que fazer solene profissão de fé nesta ou naquela plataforma política;

** detectar que nossa imprensa parece sofrer de um pessimismo crônico (e sempre com viés de baixa) em sua cobertura regular sobre Brasil de hoje e aquele do futuro não é o mesmo que desfraldar bandeiras contra ou a favor desse ou daquele veículo de comunicação;

** destacar tanta coisa boa que vem acontecendo no Brasil, nos últimos anos, em esferas até bem pouco inimaginadas não me empurra para a toca do Coelho, aquele instigante ponto de partida do surrealAlice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll;

** pensar a conquista das Olimpíadas no Brasil em 2016 sob um ângulo mais condizente com meu estado de espírito – o da mais lúcida celebração – não é excludente às análises de outros jornalistas e, ao contrário, poderiam todas se somar sem que uma tenha que diminuir a força argumentativa de outra.

Chegará o dia em que um simples brasileiro poderá declarar sua felicidade sem ter que… se explicar.

******

Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo