Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A complexidade da ciência e as limitações do tribunal

Exatos 200 anos depois da chegada da corte portuguesa ao Brasil – quando começamos a publicar jornais, livros e desenvolver pesquisa científica – o desafio por trás do julgamento que começa quarta-feira (5/3) em Brasília, envolvendo a Lei de Biossegurança, é uma espécie de avaliação da maturidade intelectual que conquistamos – ou não – ao longo desse período.


O resultado do julgamento que o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) fará do artigo 5º da Lei de Biossegurança (nº. 11.105/05) deverá ser conhecido ainda esta semana, Ou eventualmente adiado para data indefinida – dependendo de expedientes formais como o pedido de vista do processo – e poderá ser entendido como uma espécie de gradação numa bússola teórica. Ela indicará o ponto em que estamos no contexto da moderna sociedade do conhecimento.


Os 11 ministros que compõem o STF – apesar da pompa e circunstância com que se fazem notar – estarão desempenhando um papel além de suas capacidades intelectuais. E isso, mais uma vez – por improvável que possa parecer – tem raízes históricas que remetem ao passado, anterior à chegada da corte do príncipe regente D. João.


Quando a coroa portuguesa ainda vetava a publicação de jornais, livros e a realização de pesquisa científica no Brasil, por motivos estratégicos, os filhos da gente de posse – que não era muita – seguia para Coimbra para estudar Direito. E, para o bem e o mal, contribuíram para fazer do Brasil uma cultura discursiva. O comportamento do próprio STF, em outros momentos, é evidência dessa contingência histórica.


Os ministros do STF, por várias razões, são homens de outra época.


Foram, como outros da geração a que pertencem, intelectualmente formados num ambiente pouco arejado pela cultura científica. E agora devem tomar uma decisão que envolve profunda visão de ciência.


Dias melhores


Este é um paradoxo da época em que vivemos e sobre o que os jornais não escreveram uma única linha nas últimas semanas.


Mas os ministros não estarão isolados nessa posição difícil de traduzir as potencialidades do presente para materializar um futuro menos miserável – intelectual e materialmente – que o passado histórico. Ao menos para a grande massa de gente.


A imprensa também estará em julgamento quanto a sua capacidade de sensibilizar ou não a sociedade para uma perspectiva da ciência, inclusive os magistrados, que freqüentemente se dizem refratários a essa influência – algo impossível, na medida em que são criaturas sociais e, nesta condição, participam de uma cultura onde a mídia deixa suas marcas.


Mesmo a ciência corre o risco de ser derrotada, dependendo da decisão dos magistrados. Neste caso a ciência está representada no corpo de seus pesquisadores que nestes dois séculos de investigação, para falar apenas do Brasil, amenizaram o sofrimento humano de existir em meio a tanta ameaça à vida.


Aqui é praticamente impossível não falar de Oswaldo Cruz – e a revolta da vacina – de Carlos Chagas, de Adolpho Lutz, de Vital Brazil, de Euriclydes de Jesus Zerbini e de muitos outros, apenas entre os mortos.


Se o artigo 5º da Lei de Biossegurança for rejeitado, de muitas maneiras a continuidade do trabalho desses homens, determinados a amenizar a sorte de seus contemporâneos e das gerações futuras, estará comprometida. Não terá – por eventual falta de discernimento intelectual por parte da corte suprema – tido continuidade.


Poderíamos acrescentar José Bonifácio de Andrada e Silva, que não foi médico, mas sábio e enxergou no futuro dias melhores que na época em que viveu. Reconhecido no exterior, José Bonifácio foi expatriado do Brasil. Como Mario Schenberg, impedido de ensinar seus alunos por ser maior que o espaço em que quiseram confiná-lo.


Exceção na regra


Se o STF acatar a inconstitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança, como pretendeu o ex-procurador geral da República, Cláudio Fonteles, estaremos todos mergulhados no que o astrônomo e divulgador de ciência Carl Sagan enxergou em sua última obra, num ‘mundo assombrado pelos demônios’. E a ciência não será vista sequer ‘como uma vela no escuro’, como acrescentou seu editor brasileiro.


Em compensação, se o STF repelir a pretensão de Fonteles e assegurar a integridade da Lei de Biossegurança, só estaremos um pouco mais aliviados. Porque o desafio pela frente não será simples, tanto em termos de política científica, aplicação prática para as possibilidades das células-tronco e, especialmente, reflexão sobre o papel da ciência enquanto promessa de felicidade, para tomar de empréstimo a expressão de Stendhal.


Se o plenário do STF optar pelo futuro, em lugar de um retorno impossível ao passado, nada terá terminado ou começado do início. Apenas um ciclo de desafios não terá sido paralisado pelo obscurantismo mais comprometido com a memória que com a inteligência.


Para falar francamente – e isto os jornais deixaram claro nos últimos dias – o embate em torno da Lei de Biossegurança é na essência, por desconfortável e anacrônico que possa parecer, um enfrentamento entre ciência e religião.


Não que ciência e religião sejam necessariamente antagônicos – hipótese que muitos não suportam ouvir. Mas Dalai Lama, líder religioso, é um exemplo disso. A neurogênese – produção de novos neurônios, as células nervosas do cérebro – por ação de exercícios e meditação foi, por exemplo, um tema científico que ele se preocupou em incorporar aos seus conceitos tradicionais.


Talvez o Dalai Lama seja a exceção na regra do obscurantismo que unifica as religiões. Ainda assim, basta uma exceção para que uma regra não seja absoluta.


Quem estiver interessado na interação do Dalai Lama com as descobertas da ciência pode tirar prova disso no livro Diálogos com cientistas e sábios, a busca da unidade – que no Brasil foi editado pela Cultrix.


Aqui, uma lei que foi aprovada pelo Congresso e tem apoio de mais de 90% da população enfrenta oposição da Igreja Católica. Isso demonstra apenas a evolução da sociedade e a involução da igreja.


Abertura indispensável


Perda de tempo se engalfinhar em discussões sem sentido com padres, bispos e eventualmente o papa sobre a necessidade de permissão para pesquisas indispensáveis com células-tronco. Esse é um tema de ciência, não de religião. Especialmente as células embrionárias, que podem tomar diferentes formas e permitir a regeneração de órgãos que vão de um músculo, como o coração, a uma célula nervosa, no cérebro.


A Igreja Católica se opôs, por anos a fio, aos estudos de anatomia, sob a alegação de que o corpo era território do sagrado e não deveria ser profanado. Gente minimamente informada sabe avaliar o custo desse pensamento, anacrônico já no passado medieval.


A Igreja Católica, à época da proclamação da República, alardeou que, em relação ao casamento, Deus estava ‘sendo substituído por um escrivão de polícia’.


A Igreja Católica tem, sistemática e irresponsavelmente, se recusado a aceitar o uso de camisinhas como forma de prevenir a Aids, sob o argumento de que os jovens devem preservar a sexualidade para a reprodução. Ao mesmo tempo, desembolsa milhões de dólares mundo afora para silenciar e indenizar vítimas de violência sexual cometida por padres e bispos.


A Igreja Católica – numa discussão que vem da Antiguidade Grega – sustenta, sem nenhuma base empírica, porque se aventura num território que não pertence a ela, que a vida começa na concepção.


De onde tirou esse conceito nebuloso?


Talvez da mesma cartola com que assegurou, por séculos e séculos, que a Terra era o centro do Universo e em torno dela girava o Sol.


O assunto de quando a vida se inicia é extremamente complexo e não tem como ser abordado por dogmas. Afinal, o que é a vida? Mais de meio século depois da publicação do clássico de Erwin Schrödinger – O que é vida? – ainda não sabemos o que a vida é. E se desconhecemos a natureza da vida não temos como fixar exatamente quando ela começa.


Posição lúcida e abrangente até agora tem a geneticista Lygia Pereira, do Instituto de Biociência da USP, para quem o emprego de células-tronco, numa avaliação feita há algum tempo, é algo ‘suportável’. Com isso ela não nega a complexidade que a discussão abriga. Mas, ao mesmo tempo, não abre mão da abertura indispensável à investigação científica.


Homens do passado


Da brigada religiosa contra a Lei de Biossegurança participam homens de prestígio, como o advogado tributarista Ives Gandra Martins, ligado ao ultra conservador Opus Dei. Gente incauta pode se impressionar com essas adesões, mas um retorno à história revela as inconsistências.


Clavius, o famoso matemático encarregado por Gregório XIII da reforma do calendário, reagiu de forma surpreendente às imagens do telescópio de Galileu. Sustentou que Galileu tinha ‘ilusão de óptica’ ao revelar que a Lua tem acidentes que a tornam tão irregular quanto a Terra.


Para Clavius, em malabarismo argumentativo, uma matéria translúcida cobria a Lua e a deixava tão esférica quanto uma bola cósmica de bilhar. Clavius foi bom matemático, mas também foi um dos que deixou que a memória se apossasse da inteligência.


Certamente não é nenhuma façanha intelectual sustentar que o papel das células-tronco embrionárias na reconstituição de órgãos é parte da medicina do futuro. Mas, em muitos casos, pode amenizar de imediato a dura sorte de milhões de pessoas – portadores de deficiências ou vítimas de doenças como Alzheimer, Parkinson e esclerose lateral amiotrófica – se as pesquisas não forem vetadas, como pretende a postura conservadora.


As células-tronco embrionárias – eventualmente até as adultas, ou ambas, mas isso só a continuidade das pesquisas pode demonstrar – são um estágio posterior à era dos transplantes, a substituição mecânica de órgãos danificados, no longo caminho – e sem perda da humanidade – para nos tornarmos os filhos mais jovens de Matusalém.


Possivelmente homens que estarão julgando a Lei de Biossegurança – e ou os defensores de uma ordem arcaica – não tenham se dado conta disso, ou confundam essa perspectiva com cenários de ficção.


Justamente por isso é que são homens do passado. Cegos para as cenas do futuro.


 


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Jornalista