Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

A crise depois da tragédia

A revista satírica Charlie Hebdo entra em uma grave crise interna tendo como pano de fundo os 30 milhões de euros arrecadados depois do atentado. Quatro meses depois do ataque jihadista que dizimou sua redação, começam a aparecer as tensões internas. Luz, o desenhista que fez a caricatura de Maomé em seu número histórico de 14 de janeiro, ameaça deixar a publicação. Um grupo de redatores pede uma administração mais coletiva e transparente. A suspensão do emprego de uma de suas jornalistas mediante um comunicado típico de uma multinacional é o último conflito, outro que mostra a difícil situação da revista.

Zineb El Rhazoui, jornalista marroquina que vive sob ameaça dos muçulmanos radicais, recebeu na quarta-feira uma carta da chefe de Recursos Humanos da revista. Ela era convocada a uma entrevista prévia a sua demissão por falta grave, pelo que está, de fato, suspensa do emprego. El Rhazoui divulgou a carta e declarou à imprensa que estava escandalizada pelo procedimento de uma revista que se transformou no ícone da liberdade de expressão e dos valores da República francesa.

“Meu marido perdeu seu emprego porque os jihadistas descobriram onde trabalhava e eu estou ameaçada”, explicou El Rhaoui. “Agora a revista me manda embora… Bravo, Charlie”. Segundo o site Mediapart, as ausências da jornalista, que, na verdade, admite estar incapacitada para trabalhar desde a tragédia, são o motivo da suspensão.

O desenhista Luz diz que a estrutura da revista para distribuir fundos às vítimas é pouco clara

Também esta semana Jeannette Bougrab, ex-secretária de Estado de Sarkozy e companheira de Stéphane Charbonnier, Charb, acertou suas contas com a revista em seu livro Maudites (Malditos) e em várias entrevistas. Agora assessora de Cultura na embaixada da França em Helsinki, Bougrab classifica Luz, em Valeurs Actuelles, de “medíocre” e “usurpador”. Acusa-o por ter decidido de parar de fazer caricaturas de Maomé. Com esse gesto, afirma, Luz “terminou o trabalho” dos jihadistas assassinos.

Bougrab aproveitou a ocasião para mostrar na Paris Match fotos que demonstram que convivia com Charb. É o modo de responder à humilhação a que foi submetida pela família do desenhista assassinado. Seus pais e irmãos criticaram Bougrab quando ela contou entre soluços que era a companheira do diretor desaparecido. A família negou tal relação e inclusive impediu que a mulher fosse ao funeral.

Depois do atentado de 7 de janeiro, no qual perderam a vida nove membros da redação, o dinheiro mudou por completo a situação da revista. De ser uma publicação pequena com graves problemas financeiros, tornou-se um ícone da República e possui agora mais dinheiro que nunca: 30 milhões de euros no total, somando doações, vendas e novas assinaturas.

Uma parte do dinheiro, foi dito em janeiro, seria para os familiares das vítimas. Mas nada foi feito até agora. A equipe da publicação satírica não deu esclarecimentos. A falta de transparência com o resto da imprensa é habitual desde o atentado. “As doações irão às vítimas”, disse Luz há algumas semanas, “mas a estrutura que deve se ocupar disso não está muito clara. Como vai ser administrada?”. A propriedade da revista satírica está concentrada em três partes: 40% corresponde aos pais do falecido diretor, Charb; outros 40% são de Riss, seu responsável atual; e os 20% restantes estão em mãos do diretor financeiro, Eric Portheault.

A jornalista suspensa do emprego está ameaçada por supostos jihadistas

Depois das primeiras tensões com Jeannette Bougrab, quinze membros da redação, entre os quais estavam Zineb El-Rhazoui e Luz, publicaram em março um manifesto no Le Monde pedindo a refundação da Charlie Hebdo. Reclamavam uma reorganização da revista e uma maior transparência na gestão.

No final de abril, Luz contava à revista Les Inrockuptibles que não voltaria a publicar uma caricatura de Maomé, mas ao longo da entrevista expressava seu mal-estar com a nova Charlie. “Depois dos atentados”, dizia, “a estrutura da revista explodiu”. O desenhista também se perguntava que necessidade tinha a revista de manter uma porta-voz como Anne Hommel, amiga e também assessora do ex-diretor do FMI, Dominique Strauss-Kahn.

Mediapart agora especula que Luz também poderia deixar a revista. Segundo contou, ele nunca foi convidado a participar no capital da empresa, apesar de afirmar que não tem nenhum interesse em fazer parte da direção.

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Gabriela Cañas, do El País, em Paris