Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A defesa do desemprego ‘necessário’

“(…) Um homem se humilha/ Se castram seu sonhos/ Seu sonho é sua vida/ E vida é trabalho/ E sem o seu trabalho/ Um homem não tem honra/ E sem a sua honra/ Se morre, se mata/ Não dá pra ser feliz/ Não dá pra ser feliz.”

O trecho da bela canção de Gonzaguinha, composta no fim da década de 1980, e muito bem interpretada por Fagner, relembra o flagelo da falta de ocupação remunerada e sua ação abrasiva na vida de uma pessoa, para além da dimensão econômico-financeiro-laboral. Mesmo assim, há quem na imprensa aprove o aumento de taxas de desemprego em nome de algo que considera mais importante.

E em meio ao espanto de se ouvir elucubrações sobre o tema, é quase impossível precisar o que move colunistas e articulistas a emitir um determinado tipo de opinião, com a sua defesa intrínseca, naturalmente. Eles, inclusive, admitem antever a enxurrada de reprovações à ideia que defendem, exatamente por representar um desrespeito a valores éticos universais, como solidariedade e fraternidade. Em alguns casos, torna-se ainda mais complexa a tarefa de interpretar que motivos levam jornalistas experientes, já assentados no privilegiado locus de comentarista ou colunista, a se arriscarem a ser alvo de críticas pesadas, não apenas à sua “argumentação” – com viés de “falácia”, termo mais apropriado dependendo do exemplo que se tome –, mas até mesmo a seu caráter.

Seria desfaçatez, servilismo (aos interesses do patrão, obviamente), falta de altruísmo ou até mesmo alguma canalhice socialmente tolerada – dependendo do emissor e do veículo em que atua, evidentemente –, ou, ainda, a junção de todas essas motivações? O fato é que, pelo menos nos últimos tempos, quando a economia brasileira está em fase difícil, como neste ano, avolumam-se com certa constância os textos e falas favoráveis ao que seus autores denominam “desemprego necessário ou positivo”.

É o que se verifica neste momento de estagnação econômica, embora os índices de desemprego ainda permaneçam relativamente baixos para os padrões históricos brasileiros – sobremodo se comparados aos encontrados nas principais economias mundiais – e a inflação, apesar de alta, superior a 8%, não tenha ultrapassado a barreira psicológica dos dois dígitos. Porém, nada disso inibe jornalistas que, em consonância com a ideologia de seus empregadores, buscam reduzir o impacto do desemprego propagando que seria bom (sic) para a economia do país, já que, obviamente, resulta em diminuição de consumo, provocando baixa geral nos preços e, consequentemente, amainando as pressões sobre a inflação – que ainda está bem acima do teto (6,5%) da meta praticada pelo Banco Central.

Será que é mesmo isso o mais importante? Ou a sobrevivência digna de milhões de pessoas importa mais do que dados “frios”, que, embora bem-vindos e celebrados pelos representantes do “deus-mercado”, porquanto positivos à luz da visão estritamente baseada no economicismo, embutem o quê? Com efeito, dramas humanos. Esta é a terrível e inexorável resposta.

Economicismo e desumanidade

Contudo, uma resposta ainda insuficiente para dissuadir aqueles que centram seus argumentos apenas no viés economicista, contemplando tão-somente aspectos estatísticos. Simplesmente porque eles consideram pertinente defender medidas que geram essa triste realidade a milhões de pessoas – no Brasil e mundo afora também, sobretudo naqueles países que seguiram as diretrizes do FMI desde os anos 2000 – e parecem não se intimidar com a real possibilidade de que, em seus textos e falas, sobressaiam a injustiça e a desumanidade de uma posição calcada no egoísmo peculiar ao neoliberalismo.

E com essa crueldade dissimulada, os cultores do “desemprego positivo” tentam se precaver antecipando que sabem que serão fortemente criticados. A despeito disso, continuam tentando defender o injustificável e, principalmente, sob a égide de uma mínima moral, ao atenuarem os efeitos devastadores da falta de emprego para uma família pobre ou até de classe média.

Fazendo-se uma teleologia simples, vem a indagação praticamente inevitável. E se for prolongada a tragédia da desocupação laboral para milhões de trabalhadores? Tentemos antecipar o óbvio resultado da tragédia: como recebiam baixos salários – a esmagadora maioria, no capitalismo selvagem praticado no Brasil, irrefutavelmente – são donos de poucos recursos, posto que têm (ou tinham) o bastante somente para sobreviver e não para acumular riqueza. Logo, uma das consequências inevitáveis será o aumento de pedidos de inclusão em benefícios trabalhistas e programas sociais, pelo singelo e vital direito de continuar a existir com alguma dignidade.

E por ironia do destino, cretinice ou mau-caratismo, os mesmos comentaristas, colunistas e articulistas (assim como alguns de seus entrevistados) que usam seus espaços na imprensa empresarial oligopolizada para advogar essa excrescência – remanescente da visão do regime ditatorial, prevalente no Brasil durante 21 anos, em relação à parcela menos favorecida do povo brasileiro – voltarão a mirar os “altos gastos” com esses (fundamentais e civilizados, deve-se sempre enfatizar) tipos de auxílio que governos destinam aos que mais precisam. Neste caso, só para lembrar o que já é conhecido há decênios internacionalmente, trata-se do Estado do Bem-Estar Social, cujo objetivo precípuo é incluir todos os indivíduos de uma sociedade.

Vem, provavelmente, da reprovação a essa imprescindível e exitosa política de superação da iniquidade socioeconômica, adotada por muitos governos há mais de cem anos, o verdadeiro motivo para a “celebração” ao flagelo do desemprego alheio perpetrado por empregados (é o que são, conquanto pareçam iludir-se) de empresas que compõem o vergonhoso e nefasto oligopólio da comunicação em massa nacional.

Por fim, essa imoralidade enseja uma incontida e algo irritada reação: talvez tais jornalistas (e demais defensores desse absurdo social e antiético) devessem começar anunciando o seu próprio pedido de demissão, gerando assim a redução do seu poder de consumo, pois decerto colaborariam para o maior equilíbrio da economia e o desejado controle da inflação. O mercado agradeceria e as estatísticas ficariam muito mais bonitas para a produção de gráficos e ilustrações em todos os meios de comunicação, mormente nos veículos em que atuam, a cujos proprietários procuram agradar sabujamente, ainda que, para isso, tenham de defender posições moralmente condenáveis, independentemente da delimitação espácio-temporal que se escolha para analisar ao longo da História Contemporânea.

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Luciano Zarur é jornalista, professor universitário e mestre em filosofia