Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A educação onipresente (para Tia Cléia)

Profanaram a sala de aula, transformaram os templos do ensino infantil em um lugar sem lugar, fizeram parecer que os professores não são mais quem pensam ser, que a educação não educa, que o professor não ensina, que a avaliação não avalia, que a aprovação não aprova e a reprovação não reprova. Nas palavras do filósofo Michel Serres (2012), fizeram parecer que agora “o saber se espalha em um espaço homogêneo, descentrado, de movimentação livre. A sala de aula de antigamente morreu, mesmo que ainda a vejamos tanto”.

Talvez, do ponto de vista da Tia Cléia, minha primeira professora da educação infantil até os anos iniciais do ensino fundamental, a educação já tenha mudado muito.

Talvez o atravessamento proporcionado pelos meios de informação e comunicação aos processos educativos, do final do século 20 em diante, tenha atingido níveis antes impensáveis, quando o consumo de TV chegou ao patamar das três horas diárias, somando-se a estas, mais recentemente, o consumo de três horas de games e outras tantas de redes sociais, num exagero simbólico que beira as 24 horas do dia, e mais se houvesse.

Talvez tudo isso que, para a Tia Cléia, fosse inimaginável, para os novos educadores tenha se transformado num imenso desafio e ao mesmo tempo celeiro de oportunidades frente às responsabilidades e consequências da vida e do ensino conectados, parte do que o professor Muniz Sodré tem chamado de “ecossistema midiático”, que se depara com as demandas familiares pelo consumo responsável de mídia.

Talvez, antes tarde do que nunca, este cenário de mudanças esteja sinalizando que a influência da mídia nas relações entre educadores e educandos e vice versa, tenha extrapolado a escola, visto que boa parte dos recursos pedagógicos se encontra e nos encontram em lugares para além das salas de aula.

Muitos jeitos de ser, de ver e de pensar

De acordo com o legado do educador Antonio Carlos Gomes da Costa (1949-2011), a Educação e a própria escola estariam atravessando um momento de busca de novos caminhos, necessitando se reinventar, tendo em vista as demandas do aluno do século 21.

No entanto, se hoje os recursos pedagógicos estão em toda parte, é o tempo integral que dedicamos ao consumo de cada recurso midiático que define o quanto seremos afetados pelo que é consumido no grande mercado tecnológico da informação e do conhecimento.

A educação enquanto mercadoria transformou-se em produto comercializado em um ambiente de disputas sendo possível encontrá-la ou ser encontrado por ela muito mais no lado externo do que dentro das salas de aula. Seja nos programas de TV, nas trocas nas redes sociais do ambiente digital, em diferentes plataformas, dispositivos e aplicativos.

A autodidaxia praticada pelos vorazes consumidores fez com que a mídia como um todo – principalmente a TV e a internet, meios mais consumidos – se aproximasse tanto da educação que, aos poucos, sem fazer alarde nem contar nada a ninguém, além de nos vender seus conteúdos, distribuiu junto novos hábitos e muitos dos jeitos de ser, de ver e de pensar que passamos a reproduzir numa espécie de mimese contínua.

Ninguém educa ninguém

É provável que a própria mídia tenha se tornado um educador universal. Isto pode ser constatado em gestos do cotidiano repetidos à exaustão sem, contudo, explicação lógica para tal. Por exemplo, quando acessamos centenas de vezes o e-mail num determinado período do dia ou quando andamos na rua de cabeça baixa, correndo risco de algum acidente, enquanto, ao mesmo tempo, teclamos nos nossos smartphones, meio lobotomizados como se fôssemos robôs ou zumbis, de acordo com a preferência.

De acordo com o pesquisador e autor mexicano Guillermo Orozco Gómez (2014) – doutor em Educação pela Universidade de Harvard –, “as aprendizagens estão sempre em concorrência […] Às vezes ganha a escola, outras vezes a família, outras ainda a religião. Faz tempo que quase sempre ganham os meios de comunicação”. É possível discordar quando se afirma que todo ato de comunicação implica um aprendizado (Levy, 2011) ou que “somos aquilo que vemos e ouvimos, assim como somos aquilo que comemos; por isso, é importante imprimir nos indivíduos a necessidade de evitar comida ruim da cultura da mídia e escolher produtos mais sadios e nutritivos” (Kelnner, 2001).

Todavia, como afirma Martìn-Barbero (2006), não há como negar a importância se estudar “não o que fazem os meios com as pessoas, mas o que fazem as pessoas com elas mesmas” quando consomem os meios.

De acordo com a educomunicadora Jaqueline Moll (2015) embora a educação tenha se tornado onipresente, ninguém educa ninguém e o educando, ao biografar-se, historicizar-se, existencializar-se, empoderado pela própria narrativa, se torna capaz de romper com a invisibilidade e se recolocar no centro do seu caminho pedagógico.

As dinâmicas opressoras dos antigos modelos

Novos recursos tecnológicos, cada vez mais, atravessarão e modificarão os ambientes de ensino-aprendizagem, inserindo modelos pedagógicos híbridos, dispostos a aproximar distintos universos e servir de ponte entre o livro didático e a educação conectada. Mas, para que novos projetos pedagógicos resultem no atendimento das demandas do educando do século 21 quanto ao desenvolvimento da capacidade de leitura criticamente os meios, ampliação da autonomia e do protagonismo dos alunos na construção do próprio saber, as novas tecnologias, plataformas adaptativas e demais suportes midiáticos certamente vão necessitar da mediação atenta e solidária dos professores.

Diante do atravessamento decorrente do uso massivo das mídias, dentro e fora do ambiente escolar, as práticas educomunicativas, mídia-educativas e a alfabetização midiática informacional anunciada pela Unesco, “podem equipar os cidadãos com habilidades de raciocínio crítico, permitindo que eles demandem serviços de alta qualidade das mídias e de outros provedores de informação” (WILSON et al., 2013).

Do contrário, num futuro previsível a desigualdade provocada pelo analfabetismo digital poderia ser ainda mais cruel do que o funcional já experimentado pelos jovens brasileiros.

Como sinalizado por Delors (2006) e Costa (2008), ao permanecer intocada a essência das dinâmicas opressoras dos antigos modelos, a revolução sinalizada a partir do uso pedagógico das novas tecnologias da informação e da comunicação estaria fadada à mera decoração de ambiente educacional, caminhando em sentido oposto ao empoderamento dos educandos frente à massiva presença e atuação educadora da mídia seja no ambiente escolar ou fora destes.

Que tipo de cidadão queremos formar?

Uma das distorções mais comuns que emerge deste estado de coisas ocorre quando se contabiliza a parcela da responsabilidade individual que cabe a cada ator social que fornece, multiplica ou consome os produtos da cultura da mídia.

Uma ou duas vezes a cada ano, é deveras curioso o momento em que a mídia chama às falas os educadores e gestores da Educação, como se estes fossem os únicos responsáveis pelos resultados negativos dos índices educacionais no Brasil. Podemos tomar como exemplo o Pisa – Programa Internacional de Avaliação de Alunos, que avalia as habilidades dos educandos na faixa dos 15 anos – que, ano passado (2014), demonstrou que ainda amargamos a desconfortável posição no 38º lugar, dentre 44 países.

Ainda que a sempre doce e generosa Tia Cléia jamais concordasse sequer em mencionar o infeliz procedimento, no caso citado, tanto a mídia quanto seus controladores, deveriam todos juntos, simbolicamente, dar as mãos à palmatória sem se excluírem de sua parcela de responsabilidades em relação baixo rendimento creditado ano após ano à Educação brasileira. Isto incluiria também os concessionários de TV aberta, seus afiliados e boa parte dos nossos representantes tanto na Câmara Federal quanto no Senado da República, que pessoal, familiar ou indiretamente também são donos (concessionários) de canais de rádio, TV aberta, além de outros meios, simultaneamente.

Diante disso, duas questões que a mídia e seus representantes deveriam responder são semelhantes às que todos os outros tipos de educadores devem se fazer diariamente: que tipo de sociedade, para cuja construção, queremos contribuir? Que tipo de cidadão queremos formar?

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Wagner Bezerra é mestre em mídia e cotidiano, educomunicador e autor do livro O Segredo da Caverna, a fábula da TV e da Internet