Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A fantástica fábrica de estupidez

Há pouco tempo, deparei com uma situação preocupante, durante uma aula do curso de Jornalismo. Diante da projeção da imagem da Vênus de Botticelli, em um slide, na disciplina de Semiótica, parte da turma desandou a interromper a aula com comentários do tipo ‘Olhem que gorda!’, ou coisa que o valha, julgando a imagem a partir da padronização estética de hoje.

Fosse uma conversa de bar e talvez os comentários passassem naturalmente despercebidos. Vindos de alunos de Jornalismo, geram (ou deveriam gerar) preocupação.

A Vênus representa o padrão estético da época em que foi pintada (entre 1482 e 1484). Recontextualizada, já não se enquadra no ideal teórico. Atualmente, a moda e os produtos culturais nos impõem uma forma de beleza mais próxima da beleza física dos faraós egípcios, como estão hoje.

Para além da demonstração de preconceito que o fato citado acima revela, ele foi, para mim, uma comprovação de que, mesmo em ambientes onde a mídia é discutida, seus padrões, sua visão única e restrita, permanecem dificultando o desenvolvimento de um raciocínio original. Os alunos críticos da aparência da Vênus parecem limitar-se a aceitar o que se lhes impõem como ideal, certamente incapazes de expandir o pensamento, ir além, distanciar-se de seu mundinho cultural midiaticamente restrito. E, o que é ainda pior, julgam o mundo e as pessoas a partir dessa compreensão pobre. Ora, espera-se que um jornalista saiba abstrair minimamente o valor humano das diferentes culturas em que se insere.

Para além dos modismos vigentes

Não há que culpá-los, no entanto. Falham apenas por ignorância e falta de estudo do contexto das coisas que os cercam. O problema é que é exatamente a partir da ignorância, e da estupidez dela derivada e sedimentada em precárias visões de mundo, que nascem todas as formas de preconceito. E, infelizmente, essas pessoas não são minoria entre os presentes e futuros profissionais de mídia.

Em seu livro A ditadura da beleza e a revolução das mulheres, o psiquiatra Augusto Cury tece uma crítica pujante à mídia. No prefácio desse romance, ele explicita a realidade que o levou a escrevê-lo: ‘Qualquer imposição de um padrão de beleza estereotipado para alicerçar a auto-estima e o prazer diante da auto-imagem produz um desaste no inconsciente, um grave adoecimento emocional.’ Os padrões sempre excluem quem não pode neles se enquadrar, mas todos ficam a eles expostos constantemente, seja em revistas, na televisão (o discurso jornalístico arrogantemente ensinando a viver/consumir), jogos de videogame etc. Penso que as pessoas deveriam ter liberdade suficiente para criar suas próprias opiniões, reconhecendo a existência de outras diversas e contrárias.

Talvez isso seja mesmo muito careta, em meio à selvajaria de hoje em dia, mas creio que ainda vale a pena acreditar em uma sociedade em que as pessoas vejam, antes, o lado humano, intrínseco a tudo em nossa sociedade, e deixem de lado padrões que, a partir da contaminação cultural, tornam-se modelos para que autoridades em estupidez julguem, condenem e humilhem seus semelhantes. Mas, é claro, se for para construirmos uma sociedade mais humana, precisaremos de indivíduos emancipados (para usar um termo do filósofo Theodor Adorno), com pensamento próprio, capazes de compreender o mundo para além dos modismos intelectuais dos discursos vigentes. E sequer podemos proibir nossos filhos de assistir TV.

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Estudante de Jornalismo