Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A festa esconde o vexame

No dia 4 de maio O Liberal se desfiliou do IVC. Foi exatamente no dia em que uma equipe do Instituto Verificador de Circulação chegou a Belém para auditar a tiragem do jornal no primeiro trimestre do ano. Cinco dias depois O Liberal inaugurou seu novo parque gráfico, um dos maiores e mais sofisticados do país, que teria custado entre 8 e 10 milhões de dólares.

O investimento é significativo. A Delta Publicidade, empresa que edita o diário da família Maiorana, opera há vários anos com prejuízo. Seu patrimônio líquido é negativo. Seu endividamento é crescente. Sua liquidez é nenhuma. Tecnicamente, está em situação pré-falimentar. Mesmo assim, não só decidiu como conseguiu fazer a importação da cara impressora Man Roland, a única desse modelo até agora vendida pelo fabricante alemão na América Latina. A impressão do jornal passou a ser do melhor padrão internacional.

Graças à nova máquina, uma Uniset ‘Full Color’, com forno secador, o jornal é agora todo colorido, pode usar papel fino e encartar cadernos especiais de propaganda, sem qualquer restrição à inventividade dos seus criadores. Mas também pode imprimir quase 10% a mais de jornais do que vinha fazendo com a máquina anterior, também Man Roland, de 13 anos (para esse tipo de máquina, ainda em plena forma).

O problema é que o IVC constatou, nas auditagens realizadas no ano passado, que a tiragem líquida (aquela efetivamente paga) de O Liberal é, em média, uma vez e meia inferior à informação jurada que o editor do jornal prestou ao instituto. Nos dias de semana, ao invés de gravitar em torno de 35/40 mil exemplares, a tiragem varia de 15 a 17 mil. Nos domingos, é menos da metade dos quase 90 mil que o jornal dizia vender ao público.

Sob esse ponto de vista, por que comprar uma máquina mais veloz se a anterior nunca foi além de dois terços da sua capacidade plena, 5 mil jornais por hora inferior à da nova unidade, que roda 65 mil por hora? A primeira edição impressa no novo parque gráfico não consumiria nem uma hora da máquina, se ela, no dia 9 de maio, já estivesse com sua plena capacidade instalada. Mas O Liberal do dia seguinte só chegou ao leitor ao meio-dia. Nos quatro dias seguintes houve atraso até maior.

Desfiliação desonrosa

Ninguém que conhece a complexidade de montar uma máquina como essa se surpreendeu. Os convidados da família Maiorana viram a Uniset em atividade apenas quatro meses depois do início da montagem. Os últimos ajustes foram feitos quando já havia a obrigação de colocar o jornal na rua. O papel rasgava e a tinta escorria pela rotativa, comprometendo o impacto que os donos do jornal certamente esperavam com a apresentação do novo produto. Houve mais pressa e improvisação do que se esperava, com os prejuízos decorrentes desses dois fatores. Além disso, persistiu a lacuna anterior: o sistema de pós-impressão ainda não é completo. O empacotamento e endereçamento continuam a ser feitos manualmente.

Mesmo assim, é inegável o efeito provocado pela excelente aparência que o jornal passou a ter. Mas será que essa boa impressão será duradoura? Será que ela conseguirá evitar a seqüela mais profunda, a da desfiliação ao IVC? Sem considerar outros fatores, como a manutenção de um conteúdo editorial deficiente, que contrasta ainda mais com a qualidade da impressão do jornal, e o discutível projeto gráfico adotado, bem semelhante ao de O Globo, que esfriou muito a movimentação característica do jornal diário, transformando-o numa revista, o ‘fator IVC’ poderá emergir como um complicador.

Não local, por enquanto. As agências de propaganda e os seus clientes optaram por ignorar as duas bombásticas auditagens realizadas pelo IVC no ano passado, que despejaram O Liberal da posição de ‘o maior jornal do Norte e Nordeste’, como ele se anunciava (e continua a se anunciar, mas agora sem uma sustentação técnica), para um patamar que não é muito superior ao do seu concorrente direto, o Diário do Pará, do deputado federal Jader Barbalho.

Toda a campanha diferencial de O Liberal se baseava nos boletins de auditagem do IVC. Ainda não se sabe se o jornal sempre fraudou a sua tiragem ou a inacreditável maquilagem se restringiu a 2005. Admitindo-se a segunda hipótese como a mais provável (inclusive por ser difícil acreditar que o IVC fosse ludibriado por tanto tempo), a pergunta que cabe na busca de uma explicação é: por que a tiragem do diário dos Maiorana teve uma queda tão drástica e tão rápida? E por que a empresa decidiu assumir risco tão pesado, sabendo que a mentira inevitavelmente seria descoberta, a ponto de fazer uma desfiliação desonrosa, talvez a única desse tipo na história de meio século do IVC, completada neste ano?

Para aquilatar a gravidade do ato cometido por O Liberal é necessário considerar que o Instituto Verificador de Circulação, criado em 1957 por algumas das principais publicações jornalísticas e agências de publicidade do Brasil, pulou, nesse período, de 16 empresas filiadas para 310 (agora, 309), auditando as tiragens de quase 400 publicações, entre jornais e revistas. Na Amazônia, apenas dois jornais continuam com suas tiragens verificadas pelo instituto: o Diário do Amazonas, de Manaus, e O Estadão, de Porto Velho.

Situação vergonhosa

O IVC é a única fonte segura e confiável sobre tiragens no país. Para ser aceita pelo instituto, a publicação tem que acolher publicidade competitiva a preços constantes de tabelas públicas. Durante os três meses que dura o processo de filiação, o IVC realiza uma supervisão na organização da empresa, para constatar se ela está em condições de atender as exigências dos estatutos e normas do instituto. Em seguida, uma equipe de auditores verifica os dados de circulação correspondentes a um mês do calendário (o mais próximo possível) e emite um relatório de auditoria. Só depois da aprovação e divulgação desse relatório é que a publicação será filiada. Quem usar os dados antes desse momento terá seu pedido de filiação indeferido.

A partir da divulgação do relatório inicial de auditoria (chamada de auditoria prévia), a publicação terá que entregar periodicamente ao IVC, dentro dos prazos previstos, a sua ‘informação jurada’, contendo dados da circulação líquida (efetivamente paga), que, depois de conferida, será distribuída a todos os associados. Semestralmente, o IVC programa e executa as comprovações da circulação líquida dos veículos filiados, ‘de modo a não deixar nenhum período sem auditoria’, como alerta em seu site.

Essas comprovações abrangem uma vasta quantidade de documentos, registros estatísticos e contábeis, que vão desde as apurações industriais sobre matérias primas usadas (papel e tintas, por exemplo), produção, vendas, distribuição grátis, exemplares não distribuídos e inutilizados, distribuição e expedição e apurações de vendas. A diferença máxima admitida pelo IVC entre os dados de circulação apresentados nas ‘informações juradas do editor’ e o resultado da auditoria é de 4%. Acima deste percentual o editor será advertido e o seu relatório de auditoria divulgado para todos os associados.

Foi o que aconteceu com O Liberal. Mas com o agravante de que a diferença foi de mais de 100% a até 160%. Ou seja: 400 vezes mais do que o limite de variação admitido pelo instituto. Talvez, em tais proporções, este seja o caso mais grave já registrado nos anais do instituto, com o complicador da saída que Delta Publicidade resolveu fazer, praticamente fugindo de ser flagrada em nova situação vergonhosa. E isso exatamente a cinco dias de uma festa de inauguração, com toda pompa e circunstância, ‘abrilhantada’ pela nata do mundo oficial e da sociedade ‘colunável’.

Aparência de luxo

Dessa toca provavelmente não sairá nenhuma reação à forma humilhante de desfiliação de O Liberal. Agências, anunciantes, autoridades e personalidades preferiram fazer de conta que essa história cabulosa não existe. Coerente com esse mundo da fantasia, O Liberal continua a se proclamar ‘o maior jornal do Norte e Nordeste’. Como a única fonte capaz de confirmar esse título, o IVC, já não se imiscui na caixa de Pandora do diário dos Maiorana, agora à quitanda de juntou o circo. De bela aparência, é verdade, com uma lona de Primeiro Mundo, mas definitivamente mambembe por dentro.

Do desdobramento da nova situação dependerá o futuro da empresa. O custo operacional do jornal se tornou mais pesado do que antes, com as despesas com mais tinta e papel mais caro. A receita publicitária pode não suportar o novo encargo. Um efeito de contração já se fez sentir: as redações de O Liberal e do Amazônia Hoje, o outro diário da casa, foram unificadas. Disso resultará mais trabalho sem melhor salário para os jornalistas, que tentaram inutilmente resistir à ordem superior.

Para cobrir o buraco nas contas, a publicidade do governo terá que aumentar, o que agravará ainda mais o oficialismo da publicação, afetando outra das palavras de ordem da sua propaganda: a credibilidade. Assim, a aparência de luxo que a boa impressão conferiu ao jornal, ao invés de se tornar o código de acesso a uma etapa superior na escalada da publicação, pode acabar sendo uma fantasia pesada demais para carregar, provocando acidentes como aqueles a que anualmente está sujeito um dos símbolos criados e sustentados pela corporação, da qual é sua expressão mais translúcida: a rainha das rainhas do carnaval.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)