Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

A filósofa do Fantástico

A intelectual Viviane Mosé possui uma competência que vai da poesia à psicanálise, com o acréscimo de um doutorado, em filosofia. As informações pesquisadas dizem mais: que ela é autora de livros, atriz, carismática, e que possui muitos e influentes admiradores dos seus cursos particulares de filosofia. Para a filósofa, o sucesso se deve à razão de que ‘as pessoas gostam porque é uma filosofia que atua na vida, não no pensamento’. Grande comunicadora, enfim. Por conta desses universais talentos, ela estaria mais que apta, quase com um fado escrito, para grandes vôos. E foi por assim estar que naturalmente pousou no programa Fantástico, da Rede Globo de Televisão. Mais precisamente, no quadro ‘Ser ou não ser?’, de todos os domingos.

‘Aqui foi Tróia!’, disse Dom Quixote, ao mirar o sítio onde caíram ele, Rocinante e armas numa só queda. O mesmo diria a filósofa do Fantástico, se refletir pudesse com serena sabedoria. Pois o que se proclama no site do quadro como um jeito novo de falar sobre filosofia, Viviane Mosé a mostrar para todos nós como o pensamento pode ser uma viagem fantástica! – pois é, aqui também foi Tróia.

Onde se trata do que seria visto

Os desajustes de um quadro de filosofia na televisão feito mais para distrair que para educar, perdão, televisão não foi feita para educar ou instruir, a não ser em horas da madrugada, quando todo o mundo, insone, pode ver, mas digo, os desajustes de um quadro de filosofia em 8 minutos na televisão já eram ou seriam mais ou menos previsíveis. Mas nada mágico, nada fantástico. Notem o crescendo, que não é bem um subir de estágios, mas um somatório, melhor, um produto de multiplicação que se conhece pouco a pouco: filosofia na televisão multiplicada por diversão multiplicada por 8 minutos. Que resultado esperar de tão potentes fatores?

Mas aqui, como a venda de um imóvel por um esperto corretor, os fatores do quadro, quando anunciados, não se apresentavam tão secos e objetivos assim. Dizia-se, ao ser divulgado o ‘Ser ou não ser?’, como uma afirmação, sem nenhuma dúvida perturbadora.

‘A idéia é falar de filosofia com quem nunca estudou o assunto. Não concordo que a filosofia não seja para todos. Atualmente, as pessoas querem respostas para a vida e, na ausência delas, estão voltando ao pensamento’, dizia a filósofa. Bom, se a manifestação ia ser assim, mui bem-vinda seria. Pensávamos então, e por favor escondam o sorriso, que teríamos algo como O Mundo de Sofia no ar, todos os domingos, em todos os lares do Brasil. E se assim pensávamos, como um pobre de um necessitado de casa que se deslumbra ante um imóvel já vendido antes que seus olhos o vejam, mais contentes ficávamos com o aval dos editores do quadro à filósofa. Diziam eles:

‘O programa não pretende ensinar filosofia academicamente, mas oferecer ao espectador uma iniciação ao tema, incitando à reflexão. É plantar uma sementinha e esperar os resultados’.

E completava a doutora:

‘O quadro terá poucas citações a nomes e certa influência nietzschiana. Sua continuidade estará no site do programa. Lá, o espectador aprofunda as questões’.

Onde se trata do que se viu

Na crítica ao primeiro programa, Bia Abramo, na Folha de S.Paulo, já observara que as imagens eram de um óbvio quase tautológico. Se o texto falava em catástrofes a imagem na tela era de um furacão. Agora, oito programas depois, podemos ver além da imagem, ou, para usar o jargão, ir além do sensível.

Ainda que à revelia da intenção dos seus realizadores, o ‘Ser ou não ser?’ aprofunda de certo modo a filosofia. Isto porque já podemos ver que ele faz no pensamento filosófico uma profunda simplificação. E aí difícil é saber se a Galinha da filosofia em 8 minutos pôs o Ovo da simplificação da filósofa, ou se foi o Ovo do resumir da filósofa que gerou a Galinha de todos os domingos do programa. Para sair desse impasse medieval, melhor será dizer que ambos se geram, porque vêm num diálogo mui profundo e produtivo. Vejam se nos enganamos:

(Narra o texto) ‘Platão afirmava que o corpo era um túmulo que aprisiona a alma. Um obstáculo ao pensamento. (Corte para o depoimento)

‘Eu não posso te falar o que é alma, porque eu nunca vi uma alma para vir me avisar o que é alma’, diz o coveiro João Caetano.’

Vejam: chega a ser constrangedor o grau de simplificação, o nível simplório até o nível da idiotia disto. Se nos permitem um comentário, um só, vejam: o pobre do Platão passou toda a sua vida a lutar por um conceito de alma, da alma que abarcasse do desejo à coragem e daí à razão, que o fizesse penetrar no mundo das idéias, para ver toda essa luta ser rebaixada ao conceito da alma que é assombração. Com direito a cenário de cemitério numa noite de agosto do Brasil.

Onde a lógica prima

Mas não nos assombremos, ainda. Vejam, no programa que mencionava Aristóteles:

‘Uma família de Natal inventou uma língua maluca para se comunicar, um dialeto que não se parece com nada que você já ouviu antes. Será que isso tem lógica? E o que esse idioma inventado tem a ver com a Filosofia?’

Imagina? Pois aí vai a resposta e sua continuação:

‘Tudo! ‘Sete gombe pra maezta’. Russo? ‘Kudermente tombe kundermebre!’ Japonês? ‘Ebnaskdedkkenjej fuki six! Canjães! Canjães!’ Está de trás para frente? Você consegue decifrar o que são essas frases? Esse código faz sentido? Para eles, sim. E você sabe por que a família Padilha se entende, mesmo nessa língua tão estranha? Porque a conversa deles segue as regras da lógica…’

Se se permite um rápido comentário, vejam. Pouco importa, para o quadro de filosofia do Fantástico, que essa brincadeira particular de uma família nada tenha a ver com língua ou idioma. De um ponto de vista científico, claro, nada tem a ver. Escrevemos ‘científico’? Ora, científico. Nós estamos no domínio de outro território – o de passar idéias para crianças adultas, mais conhecidas como o grande público, sim, esse mesmo, o grande, ignaro e manipulável público. Porque de outro modo não pode ser visto um conjunto de crianças burras, muito burras, a quem se dirigem sons absurdos, dos quais se diz fazerem parte de um sistema lógico, do qual não se esclarece afinal que lógica mantém.

Mas não descansemos, inda. Oito minutos na televisão fazem um tempo precioso para o que o arbítrio determinar como natureza da filosofia.

(Depoimento de uma juíza) ‘A lógica está na lei, a lógica também está na boa argumentação. A boa argumentação é fundamental para a gente chegar no justo. Mas não a argumentação só da oratória e do discurso vazio. A argumentação fundamentada na prova do processo’. Nada se comenta sobre qual lógica, numa sociedade de classes, desigual como a brasileira, repousa o espírito das leis. E se não se comenta, é porque se achou bem ilustrativa para os objetivos do quadro do programa semelhante declaração. Mas estamos sendo injustos, porque a narração fala a seguir: ‘Para a lógica, não importa o que está sendo dito, mas como. Ela é a forma da linguagem, não o conteúdo’. Ou seja, sem dizer claramente que isto não é mais assim, a narração passa um sentido moderníssimo, universal, ao que já foi superado e morto muito antes deste 2005.

Então perguntamos, por fim, o que tal produção, tal quadro, tal, não sabemos bem o quê, realiza ao pretender levar ao espectador essa iniciação na filosofia?

Onde tudo, ou quase tudo é relativo

No blog da filósofa, aquele mesmo que aprofunda as informações do site, que aprofunda as questões do programa, estão e se escrevem estas linhas:

‘Para Espinosa, Deus não criou o mundo, ele é o mundo. Em outras palavras, tudo o que existe no mundo é Deus, que também pode ser pensado como a natureza, ou a substância infinita’.

Ainda que debitemos à informalidade dos blogs o cochilo do ‘ele’ sem E inicial maiúsculo, que identificaria melhor Deus, logo depois do ‘não criou o mundo’, ainda assim não poderíamos desculpar a ligeireza, para não usar mais rigoroso juízo, da frase ‘tudo que existe no mundo é Deus, que também pode ser pensado como a natureza’. Vejam, basta um ouvido, uma percepção acostumada à língua, para que se conclua que algo de não-Espinosa está aí. Porque, no mínimo, a natureza aí não pode ser somente física, inumana. E depois, O mundo é Deus, ou Deus é o mundo? As duas ordens de frase não significam a mesma coisa.

Percebe-se claro uma vulgarização da filosofia, que vai além ou aquém de tornar algo público. Há uma vulgarização de fazer vulgar mesmo, de tornar pequeno, reles, mesquinho.

Vejam. Não se trata de pretender que se ensine filosofia pela televisão, numa emissora privada que vive, em tese, de propaganda e anúncios. A nossa candidez de Candide não chegaria a tanto. Trata-se da esperança de que se encarem problemas sérios, o que não quer dizer graves, da vida de todos nós, de todos os dias, com um tratamento menos descartável, que não acabe no primeiro segundo depois que a imagem suma da tela. O ‘Ser ou não ser?’ nem faz isto, nem apresenta filósofos, sequer superficialmente. Ensaia furar as duas coisas ao mesmo tempo, e o resultado é desastroso. Deixa no grande público a falsa impressão de que assistiu a qualquer coisa ‘filosófica’. Deixa nos editores do Fantástico a não menos verdadeira impressão de que levaram algo novo, inteligente, para a grande massa.

Esta simplificação, em nome de se divulgar a filosofia, lembra uma anedota onde figura a venerável figura de Einstein. Conta-se que ele tentava explicar a Teoria da Relatividade a um senhor interessado no magnífico sistema. Por mais que explicasse, o homem não o entendia. Então o ilustre cientista tentou a simplificação, e passou cada vez mais a simplificar, até um ponto em que o seu interlocutor exclamou, ‘ah, agora entendi!’. Ao que o cientista observou, desolado: ‘É, mas infelizmente isto já não é mais a Teoria da Relatividade’.

Simplificar facilita muito. Mas não chamem isso por favor de Filosofia. Tentem Conversa de Telefone.

******

Jornalista e escritor