Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A idéia do coletivo assusta

Ao ler a reportagem ‘Viagem ao circo de Chávez’, sobre a Venezuela, me admirei. Primeiramente, pelo tom opinativo do que vocês chamam de reportagem, que pressupõe uma leitura factual de um momento, sem conclusão ou posicionamento, mas pelo menos com os dois lados da história.

Isso não pôde ser encontrado nessa ‘reportagem’, visto que, ao começar pelas fontes, que costumam servir para legitimar o que se está afirmando na matéria, vocês escolheram apenas pessoas que são obviamente contra o governo de Chávez – o ex-conselheiro do Banco Mundial e uma cientista política da Universidade Central, que é de direita.

Os tópicos que iniciam a matéria mostram somente um lado da questão e lhes ofereço aqui, o outro:

** Sobre as 20 mil pessoas que foram demitidas da PDVSA, o governo mostrou justamente no programa Alô Presidente suas respectivas folhas de pagamento, cujos salários eram astronômicos e de nítida corrupção dentro da estatal. É óbvio que uma pessoa que foi acusada de improbidade administrativa não pode exercer qualquer outro cargo público. E, se essas pessoas estão indo para o exterior, é porque têm condições de sair do país e sobreviver em outro local.

** A rede de supermercados Mercal funciona como uma feira, acontecendo uma vez na semana em determinado local da cidade, permitindo àqueles que não têm dinheiro para comprar comida nos supermercados convencionais, tenham condições de levar alimento à sua casa. Pela qualidade dos produtos não terem comparação com os desses supermercados, é um tanto nítido que a elite não compra nesses locais, mantendo, portanto, um mercado à parte deste subsidiado. A concorrência não existe porque a qualidade não é a mesma, nem o público.

** O que vocês chamam de MST, na verdade, são os Comitês de Terras Rural-Urbana. Não é tão simples como vocês colocaram, pois o processo é longo e é o povo quem envia o pedido ao governo, que vai até as terras negociar com o dono. Geralmente, o governo compra as terras, que são vendidas a preços irrisórios à população que termina ocupando o local, tendo então sua própria escritura. As terras reclamadas são, em sua maioria, terrenos que estavam ocupados previamente e o governo apenas formaliza a ‘compra’.

Vi com meus olhos

** Se os outros países não dessem a atenção devida à Venezuela, ela não estaria diariamente em noticiários da CNN ou em discussões sobre política internacional, principalmente quando são os EUA quem intermedeiam a discussão. O problema é que a Venezuela tem petróleo e sua política social assusta os EUA, e por isso ela é tão preocupante. O que os noticiários não falam é sobre os franco-atiradores encontrados em alguns comícios que Chávez realizou no ano passado. Se ninguém se importasse com a Venezuela ou não ‘estivesse de olho nela’, não haveria tanta preocupação em falar mal dela, como vem fazendo a mídia internacional – e a própria Veja.

** Se nas ruas existem imagens do presidente não foi ele quem mandou pintar. A expressão vem do povo, que ama e cultua Chávez. São essas pessoas que tiveram suas vidas transformadas.

** Outro ponto da reportagem é a falta de dados que legitimem o que foi dito: se vocês dizem que o governo multiplicou o número de pobres, quero ver alguma estatística ou de onde veio essa informação. Não posso aceitar como verdade tudo o que vocês dizem, porque estive lá e vi com meus próprios olhos o que mudou, porque falei com pessoas e visitei suas casas – o que parece que não foi feito pelos repórteres da Veja.

Pessoas da elite

** Se a oposição não tem cadeiras na Assembléia é por falta de competência em eleger-se, porque o processo é democrático e quem tiver mais votos, conseqüentemente, é eleito.

** Se a reportagem tivesse assistido ao menos a um programa de domingo, não diria que o presidente ataca a oposição, mesmo porque são tantos assuntos e tantas pessoas que ligam para falar com ele que acaba não sobrando tempo para isso.

** Se a reportagem tivesse assistido a qualquer programa das TVs que fazem oposição no país saberia que utilizam a maior parte do tempo de seus programas de debate a criticar o presidente, mas o fazem de maneira escrachada e sem nenhuma credibilidade, baseando as críticas em ofensas pessoais, sem ao menos uma proposta política de valor; talvez por isso não convençam ninguém com seus argumentos vazios.

** Os carros são daquele jeito porque, apesar do petróleo ser barato, os que vendem e financiam os carros são pessoas da elite. O processo é o seguinte: para comprar um carro é preciso ter cerca de 50% do valor à vista. E, para financiar, é preciso dizer onde se trabalha. Caso seja de um órgão estatal, não se vende o carro. O boicote da elite também acontece quando se vai alugar ou comprar um imóvel. Se é chavista, esqueça. Essa informação foi fornecida por venezuelanos de Caracas, que estavam tendo uma dificuldade enorme em conseguir um imóvel por trabalharem em empresas estatais.

Equívoco muito grande

** O governo de Chávez não é assistencialista, mas co-participativo. Nada é concedido ao povo, para conseguir até mesmo rede de esgoto numa cidade é preciso se organizar e recorrer ao governo. Isso faz com que a população se conscientize de seu poder de atuação, controlando o governo e fiscalizando suas ações. Por isso funciona, justamente porque o governo não dá tudo tão fácil à população.

** As misiones contam com cubanos pelo acordo bilateral entre Cuba e Venezuela. Pelo país não ter boas universidades de Medicina, Chávez negociou petróleo em troca de médicos cubanos, que vivem nos bairros numa espécie de policlínica. A missão de alfabetização conta não somente com professores cubanos, mas brasileiros, peruanos, venezuelanos, colombianos etc. O método varia de acordo com a equipe, não é essencialmente cubano ou ‘chavista’.

** Dizer que as pessoas são dependentes do governo por terem participado das misiones é um equívoco muito grande. As que saem alfabetizadas têm ao menos uma chance maior de conseguir um emprego, e o que aprendem não é efêmero. Tanto que continuam seus estudos, chegando até a fazer faculdade. E as pessoas que trabalham nessas missões são voluntárias, ninguém ganha dinheiro fazendo o bem, faz-se porque se quer ver um país melhor.

Essa idéia do coletivo é o que nos assusta e nos deixa perplexos e, por medo de ninguém acreditar no que estamos falando, acabamos dizendo o que querem ouvir. Por isso a revista tem se tornado um pólo hipócrita, que fecha os olhos ao que acontece na América Latina, dando capas a temas que pouco nos afetam.

** E o socialismo que vocês proclamam e que o presidente também proclama está muito longe de acontecer, porque estruturas básicas de organização de uma sociedade continuam existindo, a elite continua existindo e os pobres também.

Em vez de ficarem analisando o que pode vir a ser a Venezuela, seria melhor utilizar seu exemplo – e não o da Coréia, como fez a Veja – para tirar o Brasil desse marasmo social, criar oportunidades melhores que o inerte Fome Zero e incentivar a consciência coletiva. Isso sim, seria louvável. Mas, infelizmente, não vende revista.

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Jornalista