Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A imagem reflexa

Em período a coincidir com a fase decisiva do atual processo eleitoral brasileiro, a Folha de S.Paulo informa: vai relançar um dos filmes de uma antiga campanha publicitária na qual, em filmes diversos, imagens de figuras históricas vão surgindo aos poucos para, ao final e em totalidade, revelarem-se em agudo contraste com algumas de suas próprias realizações, listadas estas, uma a uma, mediante locução em off.

Não se trata, aqui, de especular sobre as motivações da Folha para – por entre todas as figuras disponíveis nos filmes da antiga campanha – escolher desta feita apenas, e precisamente, uma: Adolf Hitler. Cuida-se de analisar uma sutil (e quero crer não-intencional) indução ao erro, presente no filme em questão.

Até o presente momento não se tem registro de que o ditador nazista tenha passado pela transfiguração moral que os gregos clássicos chamavam de enantiodromia, ou seja, uma mudança psíquica radical, de uma ponta para a outra nas extremidades de um arco entre opostos. Como sabem os psicólogos, ‘corremos o risco de nos transformar naquilo que perseguimos’. Disso, exemplos históricos, entre tantos, são o apóstolo São Paulo, Napoleão e Stalin.

Lacerda, a opção ideal

No caso brasileiro, talvez o melhor exemplo seja (por enquanto) o de um jornalista: Carlos Lacerda, figura central de eventos que haveriam de culminar no golpe cívico-militar de 1964.

Apelidado ‘O Corvo’, Lacerda começou a fazer política em 1934, na Juventude Comunista do PCB. Membro fundador da Aliança Nacional Libertadora –frente popular contra o imperialismo e o latifúndio, Lacerda acabaria por concluir, em 1939, que a ‘solução comunista’ implicava na instituição de ‘uma ditadura pior do que as outras, porque muito mais organizada e, portanto, muito mais difícil de derrubar’. Neste sentido, o ponto-de-vista de Lacerda possuía intrigante (porém compreensível) semelhança com o expresso por Adolf Hitler em Mein Kampf. A saber: ‘O que explica o êxito da visão de mundo internacional (dirigida politicamente pelo marxismo) é o fato de ela ser representada por um partido político organizado minuciosamente.’

Não sabemos se, tal como Hitler, Lacerda acreditava que ‘uma visão de mundo só pode combater e triunfar sob a forma limitada e não numa liberdade ilimitada’. Contudo, o moto essencial e underground de todas as grifes golpistas brasileiras – since 1950 – traz a assinatura do jornalista: ‘… não pode ser eleito e, se eleito, não pode tomar posse…’ Em 1949, após filiar-se à UDN, Lacerda fundou A Tribuna da Imprensa, jornal porta-voz daquela agremiação e veículo da mais intensa, sistemática e feroz oposição ao segundo governo Vargas.

Em 1950, eleito em Nova York membro da Associação Interamericana de Imprensa, Lacerda foi nomeado secretário da organização no Brasil. E assim ungido, invocando a democracia (que julgava ‘necessário ser reformada’) e acusando o presidente Vargas de ‘malversação de fundos públicos’, ‘patriarca do roubo’ e ‘gerente-geral da corrupção no Brasil’, muitas outras e tantas campanhas empreenderam o jornalista e seu lendário jornal.

Então, por suas idiossincrasias, Lacerda, e não Hitler, melhor parece adequar-se ao propósito da campanha publicitária em foco. Creio.

******

Professor de História e escritor