Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A língua portuguesa venceu!

‘A música venceu’, tema vitorioso da escola de samba Vai-Vai, de São Paulo, guarda mais afinidades com a realidade política e linguística brasileira do que se imagina. Há alguns meses, com a vitória de Dilma Rousseff para o palácio do Planalto, surgiu o debate sobre a flexão de gênero da palavra ‘presidente’, que antecederia o nome da primeira mulher a ocupar o cargo no país. Presidente ou presidenta? Esperei algum tempo para responder à questão, pois ainda se impunha o continuum do tempo para entender a resposta da população, sempre co-autora das mudanças.

As duas formas encontram respaldo na maioria das gramáticas, mas, diga-se de passagem, gramáticas hoje em dia não são mais sinônimo de regras imutáveis. Apesar das discordâncias, penso ser mais elegante e discreta a designação ‘presidente’ para ambos os sexos, sobretudo porque os sufixos derivados de verbos no infinitivo, como pedir, solicitar e cantar são facilmente flexionados como pedinte, solicitante, requerente e cantante. Quem governa é governante, e o cargo de governanta designa profissão respeitável, porém subalterna e alternativa linguística diferenciada para quem exerce a função de gerir uma casa, um bem particular, diferente da cidade, estado ou país, de caráter público. Fosse Dilma presidenta, sua administração estaria restrita à residência em Brasília. Portanto, as estratégias de marketing para diferenciar Dilma de outros presidentes do sexo masculino esbarram no decoro do cargo que ocupa.

O trinado cafona

Na tentativa de popularizar o termo ‘presidenta’, assistimos ao lamentável episódio de Marta Suplicy, no plenário do Senado, interromper o presidente da casa, José Sarney, em horário de trabalho – sim, as sessões para debate e aprovação de projetos das quais participam os parlamentares são atividades-fim e apartes para a correção do vernáculo poderiam ocorrer em outro momento – e corrigi-lo, em tom de repreensão: ‘Pela ordem, presidente. É presidenta, não presidente’, ao que teve de escutar calada a réplica balizada do professor e escritor, mais afiado na língua que na ética: ‘Estou preferindo a forma francesa, le président‘, e deu por encerrada a discussão, embora o registro do ocorrido tenha ganhado a cobertura de mídia pretendida pela sexóloga senadora.

Ocorre que nem tudo acontece como nos sonhos mirabolantes dos marqueteiros: nenhuma emissora séria de TV ou rádio, jornal ou revista, site na internet ou mesmo o mundo acadêmico tem utilizado a forma esdrúxula ‘presidenta’. O sucesso da simplicidade melódica prevaleceu sobre o trinado cafona dos interessados em destacar o sexo feminino como trunfo para o bom governante que, como bom profissional, não precisa afirmar seu gênero.

Um inimigo mais poderoso

Ao contrário, como revanche, a língua escancara a preferência política de quem a quer manipular: Quer conhecer um petista? É aquele que no bar, com o nó da gravata frouxo, se refere a Dilma como ‘presidenta’. É evidente também que o fato de muitos jornalistas escreverem ou falarem ‘presidente’ pode ser decorrente apenas de ordem superior de seus veículos, mas isso faz parte da profissão e do mistério que guardam todas as línguas, elas encobrem desejos e frustrações, mas sempre revelam o enunciador no subtexto.

Quando o maestro João Carlos Martins afirmou que a máxima ‘a música venceu’ era seu mote preferido, o ‘pé-quente’ de sua trajetória, ele o fez ao constatar que apesar de todos os obstáculos na vida, a música em todas as suas formas foi a companheira fiel e constante em seu sucesso pessoal e profissional, a ponto de ser maior do que ele mesmo. Penso que a glosa de todos os brasileiros e portugueses é ‘a língua portuguesa venceu’, pois por mais que a violentem e assaltem, e a torçam para os mais diversos interesses, ela reage e mostra sua força e verdade. Qualquer grupo político-partidário que quiser enfrentar o povo do Brasil, de Portugal ou de outros países lusófonos, vai sempre ter que encarar um inimigo muito mais poderoso: a língua portuguesa!

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Professora de Português, jornalista e radialista, São Paulo, SP