Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A maior vítima da crise, quase esquecida

A imprensa americana cobriu principalmente o governo e os grandes grupos industriais e financeiros durante a maior crise desde os anos 1930. Quase ignorou os cidadãos, vítimas principais da retração econômica. O contraste é apontado num relatório do Pew Research Center, uma organização de pesquisa com sede em Washington. Segundo o relatório, três assuntos compuseram 40% da cobertura econômica entre 1 de fevereiro e 31 de agosto: a ajuda ao setor bancário, a batalha política em torno dos pacotes de estímulo e os problemas da indústria automobilística. As histórias mais próximas do dia-a-dia, como as vendas do varejo, os preços da comida e os impactos da crise na educação e na saúde corresponderam a apenas 2% do material divulgado. A pesquisa cobriu todos os meios de comunicação, impressos e eletrônicos.

A presença do governo e da macroeconomia é muito maior na imprensa brasileira do que na americana, em condições normais. Afora situações excepcionais, o noticiário sobre os mercados financeiros e sobre atividades empresariais ocupa a maior parte dos cadernos de economia e negócios. Também por isso os números apresentados na pesquisa do Pew Research Center chamam a atenção.

Durante a pior fase da crise, o noticiário se concentrou em duas cidades – a capital do país e o principal centro financeiro. Nos cinco primeiros meses da presidência de Barack Obama, 76% das matérias econômicas foram produzidas na área metropolitana de Washington (32%) e em Nova York (44%). Nove de cada 20 frases mais citadas em fontes eletrônicas foram ditas pelo presidente.

Pobres são mais afetados

Desde o agravamento da crise, em setembro do ano passado, era previsível um maior esforço de cobertura do mundo oficial e dos problemas do setor financeiro. Com o estouro da bolha imobiliária, grandes instituições quebraram ou chegaram muito perto da falência. Tesouros e bancos centrais dos Estados Unidos e da Europa tiveram de intervir para impedir o fechamento de alguns dos maiores bancos do mundo. O núcleo da crise era um problema de solvência, não apenas de liquidez.

Depois das primeiras ações de emergência vieram os grandes pacotes de estímulos, combinados entre os governos das principais potências. O mundo esperava a resposta das autoridades. Os fatos mais importantes para o funcionamento da economia deveriam mesmo ocorrer nos centros políticos. Até aí, tudo previsível.

O dado mais surpreendente é outro: o escasso interesse da imprensa pelos problemas dos cidadãos, isto é, das famílias, dos trabalhadores, dos consumidores. As histórias mais dramáticas são aquelas vividas por essa gente ‘comum’, quando a economia vai muito mal. Se há uma recessão, os assalariados perdem o emprego e têm de recorrer à ajuda oficial – quando não à caridade – para sobreviver e sustentar a família. Se há um surto inflacionário, as famílias pobres são as mais afetadas.

Mudanças comportamentais

Mas esta crise teve um componente especial nos Estados Unidos: ainda antes da recessão e das demissões, as famílias americanas foram atingidas pelo estouro da bolha imobiliária. De um dia para outro perderam patrimônio e ficaram com dívidas enormes. O desemprego foi um impacto adicional, não o começo do drama. No Brasil, a crise não chegou a ser um tsunami, embora tenha sido muito mais que uma simples marolinha, e seus efeitos sociais foram menos dramáticos do que nos Estados Unidos. O endividamento das famílias era menor e, além disso, a renda média dos trabalhadores foi menos afetada.

Também no Brasil o dia-a-dia das pessoas de carne e osso foi muito menos coberto que as discussões e decisões oficiais e os problemas das empresas. O desemprego foi acompanhado principalmente por meio das estatísticas empresariais – das organizações da indústria, por exemplo – e oficiais. Demissões em algumas grandes empresas chamaram a atenção, mas a cobertura se voltou, mesmo nesses casos, principalmente para os aspectos legais e para as tentativas de intervenção do governo. Mas a crise passou longe de boa parte da população pobre e as famílias brasileiras não experimentaram nada parecido com a combinação de perda do patrimônio, desemprego e insolvência.

Nos anos 1990, quando as operações de reengenharia podaram severamente os empregos nas empresas dos Estados Unidos, a imprensa americana produziu grandes histórias sobre os trabalhadores desempregados. Na época, havia alguns ingredientes especiais para atrair a atenção dos jornalistas. O sistema produtivo passava por uma ampla reorganização. Profissionais qualificados eram de um dia para outro descartados como inúteis. Ocorriam mudanças comportamentais assustadoras, com um surto de individualismo e de competição darwiniana entre os assalariados.

Bobagem menosprezar o governo

A crise da bolha imobiliária foi, sob certos aspectos, muito mais simples. Mas afetou um número muito maior de pessoas e sacrificou milhões de famílias. Mas os cidadãos comuns e os trabalhadores sindicalizados deram origem a apenas 2% das histórias coletadas no levantamento do Project for Excellence in Journalism do Pew Research Center.

No Brasil, na segunda metade dos anos 1980, houve um esforço para se deslocar o foco da cobertura econômica. A idéia era cobrir menos Brasília e mais o ‘Brasil real’, isto é, o mundo das empresas, dos mercados e dos trabalhadores e consumidores. Mas o resultado não foi uma cobertura mais equilibrada, nem mais informativa.

Seria bom produzir mais histórias de negócios e dar mais atenção às pessoas de carne e osso, mas seria uma tolice deixar em segundo plano o dia-a-dia da política econômica. Essa poderia ser a rotina da imprensa americana ou de qualquer país avançado e mais estável. Mas, num país em crise permanente, à beira da hiperinflação, com as contas públicas em desordem e sem acesso ao mercado financeiro internacional, seria uma enorme bobagem menosprezar o governo. Essa bobagem foi cometida, em alguns momentos, mas os fatos acabaram sendo mais fortes que a moda jornalística.

Boas vindas

É cedo para qualquer comentário sobre a produção do recém-lançadoBrasil Econômico. O material da primeira edição ficou dentro do previsível: um grande levantamento das possibilidades e desafios da economia brasileira, com a referência inevitável aos problemas de eficiência e de competitividade. O dia-a-dia está apenas começando para a nova publicação e ainda será necessário, nas primeiras semanas, um trabalho de calibragem. A qualidade da equipe justifica as expectativas mais otimistas.

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Em tempo: Ricardo Balthazar, correspondente doValor em Washington, chamou a atenção para o trabalho do Pew Research Center sobre a cobertura da crise e americana e sugeriu uma coluna sobre o assunto. Aqui vai o agradecimento pela ajuda.

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Jornalista