Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A mídia truncada e os ‘neo-revolucionários’

Dia 6 de maio de 2007, aproximadamente 3h50. Local: Praça da Sé, centro de São Paulo. Mais de 14 mil pessoas, a maioria de baixa renda, preparam-se para a entrada no palco do grupo de rap mais aclamado nos últimos 20 anos em nosso país : Racionais MCs. Nos 10 minutos anteriores à esperada subida do grupo, já se viam manifestações que demonstravam a empolgação do público. Pixação e invasão de prédios históricos, depredação de bancas de jornais e revistas, garrafas de vidro sendo lançadas para o alto, cigarros de maconha sendo acesos em todos os lados que a vista alcança. Essa é a cultura do povo brasileiro.

Estávamos diante da 3ª Virada Cultural brasileira, importada do berço do Renascimento. O evento, que reuniu 3,5 milhões de pessoas das mais variadas castas, idades e poder aquisitivo e que tem por objetivo levar as pessoas a se apropriarem do espaço público e acompanharem manifestações artísticas pelos principais locais da capital paulista, desta vez mostrou claramente a espécie de cultura (partindo da definição antropológica que diz ser a cultura reflexo de nossas experiências ao longo da vida) de grande parte dos paulistas (o evento ocorrido na Praça da Sé, principalmente o ‘show’ dos Racionais, foi onde houve a maior aglomeração de pessoas).

O grupo Racionais MCs, conhecido por suas letras que retratam principalmente a violência policial, abuso de poder, racismo e outros temas centrados nas periferias brasileiras, é exemplo perfeito do que é a cultura desse povo, chamado por eles mesmos, de povo sofrido, povo da periferia, tendo em seus shows histórico de violência, confusão – inclusive no final de 1994, quando o grupo fazia um show no Vale do Anhangabaú e os integrantes do grupo foram presos por incitação à violência.

Não existe um garoto proveniente da periferia que não conheça as músicas dos Racionais e não saiba cantar uma música de cor do grupo. Não só os garotos. Jovens, adultos, até idosos, vêem os músicos como exemplo de vida, de luta e vitória, elevando-os à condição de mártires. Esse povo não teve um Martin Luther King ou um Ernesto Guevara como espelho e, mesmo se os tivessem, como fazer chegar ao seu alcance e entendimento seus atos e reivindicações? Nisso, o mais conhecido grupo de rap do Brasil se destaca, pois faz seus shows da periferia para a periferia. O rádio (veículo de comunicação mais popular do Brasil) é suficiente para a divulgação dos novos ‘revolucionários’ brasileiros, ficando desnecessários quaisquer outros meios de comunicação para isto.

Dois ‘palcos’

Voltemos às 3h50 do dia 6 de maio de 2007. Começam a se ouvir as primeiras palavras do Mano Brown, líder e vocalista dos Racionais. Estas foram suficientes para causar furor geral no público presente. Na tentativa de ter uma vista privilegiada do palco em que se iniciava o show, alguns jovens subiram em uma banca de jornal, outros escalaram um prédio histórico e se dependuraram na sacada, arrombaram as janelas e acabaram, eles mesmos, por ser o show, pois grande parte das pessoas que o assistiam viraram seus corpos, antes direcionados para o palco, para a banca e o prédio invadido.

Milhares de cigarros de maconha eram acesos, uma intensa neblina se formou sobre o público. Um grupo de cerca de sete ou oito policiais tentou retirar os vândalos que pixavam, quebravam garrafas, entre outras coisas, do prédio e da banca invadida. À primeira vista, a ação policial foi um sucesso (golpes de cassetete e ameaças verbais – sucesso?). Os infratores saíram dos locais e os policiais voltaram a seus postos.

Finalmente, começa o show. Os Racionais sobem ao palco. Empolgação geral. Os jovens expulsos de cima da banca voltam a subir na mesma, desta vez em número maior, tentando mostrar de maneira ignorante que ali, durante aquele show que representava o povo humilde, os policiais não tinham poder algum. Quem mandava aquela noite era o povo. Mais uma vez os policiais expulsaram os ‘neo-revolucionários’ de cima da banca, porém, desta vez com reação do público que, indeciso para qual ‘palco’ olhar, respondeu aos policiais jogando garrafas de vidro, pedras, latas de alumínio, vaiando e ofendendo verbalmente os responsáveis pela ordem civil. O ‘sobe e desce’, lançamentos de garrafas de vidro, pedras, agressões verbais, aconteceu mais quatro vezes, com muita correria, pessoas caindo, gritando, chorando, desesperadas.

Cinco segundos fora do ar

Eis que, de repente, barulhos de tiro são ouvidos. Explosões de bombas. E começa a famosa marcha. Policiais da tropa de choque, famosos pelo massacre no Carandiru, caminham em direção as pessoas. Capacetes, armas, escudos transparentes com a palavra ‘choque’ no centro. Marchando. Acompanhando o ritmo da marcha com batidas em seus escudos. Quem assistiu ao filme Carandiru, de Hector Babenco, consegue imaginar claramente a visão acima descrita. Parecia um filme. Era um filme. Gritos, tensão, pólvora, bombas, tiros, pânico. Terror. Ninguém mais sabia para onde correr – de um lado, a tropa de choque disparando tiros, bombas e golpes de cassetete em quem quer que fosse; do outro, jovens atirando pedras, garrafas, pedaços de madeira e ferro que encontravam.

Pessoas tropeçando umas nas outras, algumas sendo pisoteadas. Uma rajada de fumaça. Só o tempo de olhar para o chão… Da bomba ainda saíam faíscas… Tarde demais. Minha vista ficou em preto e branco. Exatamente em preto e branco. Fiquei surdo. Apenas um som agudíssimo e contínuo, e mais nada. No meio de tanto pavor, tanto barulho, não conseguia ouvir nada. Remeto-me a filmes pois não é fácil descrever tal experiência. Poucas pessoas que presenciaram alguma guerra teriam a visão exata das cenas.

Em Platoon ou Apocalypse Now, não me lembro exatamente em qual deles, há uma cena em que um morteiro cai ao lado de um soldado, deixando-o surdo, cego, impotente. E foi exatamente isso que passei. No exato estouro da bomba, momento em que me virei para ver o que era a rajada de fumaça, minhas pernas ficaram moles, me apoiei em um amigo que se encontrava ao meu lado.

Cinco segundos surdo em preto e branco. Pensei estar morrendo. Quando finalmente consegui voltar à minha consciência, senti uma dor imensa em minha face e minha perna. Estava sangrando. Minha boca não parava de jorrar sangue. Olhei para um policial da tropa de choque, como em súplica para ele dar-me instrução sobre o que fazer nesse caso (agora, pensando bem, jamais aceitaria ajuda ou qualquer instrução de qualquer policial que seja, só que naquela hora, ainda voltando à consciência, o arquétipo infantil do ‘super-policial’ se fez presente), mas apenas vi em seus olhos raiva, nojo e de sua boca ainda consegui ouvir: ‘Some daqui, vagabundo!’

Olhares julgavam: marginal

Pernas tremendo, ainda não conseguindo acreditar, querendo acordar do pesadelo, saímos correndo, sem direção alguma. Nas ruas, todos tampando a boca e o nariz com suas roupas. A ardência em minha boca ficou ainda mais exagerada, não conseguia respirar direito, meus olhos ardiam insuportavelmente. Eram as bombas de gás lançadas pelos policiais fazendo efeito. Mais tiros, bombas, pessoas destruindo lojas, orelhões, banheiros químicos, postes. Finalmente, encontro uma ambulância: ‘Preciso ir para um hospital urgentemente’ – disse.

‘Olha, eu só posso levar para o hospital quem estiver morrendo…’, me respondeu o enfermeiro.

‘Onde fica o hospital mais próximo daqui?’, perguntei, ainda mais desesperado, devido ao descaso com que fui tratado.

‘Olha, não sei. Eu não sou daqui…’

Minha revolta chegou ao extremo. Em meio a uma guerra civil, onde estariam minhas armas? Ali, jamais seria ouvido; precisaria mesmo era de uma arma de fogo e, sem arrependimento algum, atiraria no primeiro policial que viesse ao meu encontro.

Corro mais, mais, e nada. Na Praça do Patriarca, exibições de pintura em tela ao vivo são mostradas, e mais uma vez, agora em nesta praça, tiros, explosões. Resultado: assim como na Praça da Sé, a Praça do Patriarca se envolveu em pânico. Correria. Encontro alguns bombeiros. Colocaram-me rapidamente em uma ambulância e eu finalmente estava a caminho de algum hospital. Quando contava o que tinha ocorrido, os olhares dos médicos e bombeiros julgavam-me: marginal. O que uma pessoa de bem estaria fazendo no meio de toda essa confusão? Respondo: estava acompanhando uma apresentação cultural da maior parte do meu povo…

Fato isolado?

Penso que quem chega de ambulância deve ter prioridade por ser alvo de alguma emergência. Errei. Tive de ficar em uma sala de espera, acompanhado de pessoas portadoras do vírus HIV que esperavam receber seu coquetel, assim como outras, com os mais terríveis casos que já pude ver em minha vida. Lá, vejam só que coisa, no meio da miséria, consegui conversar com senhores (pacientes) que entenderam e, da mesma maneira que eu, se revoltaram com este caso.

O trato dos principais jornais impressos de São Paulo em relação à 3ª edição da Virada Cultural foi extremante medíocre. Maquiando de maneira parcial o trabalho ‘efetivo’ da polícia, enganando-se que a confusão ocorrera após 20 minutos de show e usando termos gramaticais de péssimo mal gosto, como a palavra ‘capilaridade’, da qual ainda não consegui achar significado.

Na tentativa de se dizerem cultos, alguns jornalistas recorrem a palavras lidas e decoradas em algum ‘Michaellis’ da vida e esperam que o público as compreenda. Proposital ou um grave erro calcado na ignorante prepotência de certos jornalistas? Muito difícil acreditar que o tal redator use em seu dia-a-dia, ou até em suas ‘originais’ matérias, tal termo. Parece-me que, assim como o governador José Serra tenta diminuir o tamanho da tragédia dizendo ser um fato isolado, as mídias (mas, poxa, para vocês, sensacionalistas de plantão, seria um grandioso assunto a ser tratado com maior ênfase…), talvez por causa do tal ‘rabo-preso’, não estão podendo tratar com a merecida importância o acontecimento. Foi um fato isolado? Ótimo.

Esqueceram-se de dizer que a Praça da Sé reuniu o maior número de pessoas do evento. Maior parte dos ‘puros’ brasileiros, gente pobre, miserável. Dão mais espaço ao drogado Maradona, ou a alguma morte por explosão em Las Vegas, que a um acontecimento que marcará a vida de quem presenciou o abuso das tropas de choque.

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Estudante de Jornalismo na Faculdade de Campo Limpo Paulista, Jundiaí, SP