Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A monofonia das fontes

Sob pena de dizer o óbvio, vale lembrar que o jornalismo científico é, antes de tudo, jornalismo. O termo jornalismo científico, tradução do scientific journalism usual na literatura americana e inglesa, tem sido utilizado para definir uma prática específica da imprensa de divulgação de informações especializadas sobre novas tecnologias, descobertas científicas, pesquisas aplicadas em áreas que vão da saúde às exatas, passando pelas humanas e pelo meio ambiente, além de por todos os profissionais que atuam em Ciência e/ou Tecnologia. Sem dúvida, temos aqui um jornalismo especializado; hoje a área de maior abrangência temática do jornalismo.

Pensamos o jornalismo como uma prática social mediadora entre os eventos que ocorrem no nosso dia-a-dia, no mundo, e o público, que tem deles uma leitura, um entendimento, a partir dos fatos divulgados pela imprensa, ‘com um contrato de leitura específico, amparado na credibilidade de jornalistas e fontes’ [BENETTI, M. ‘A ironia como estratégia discursiva da revista Veja‘. In: XVI Compós, 2007, Curitiba. Anais do XVI Encontro Anual da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. Curitiba: Compós, 2007. v. 1. p. 1-10].

Prática mediadora do social

É esse caráter específico da mediação jornalística que o particulariza como profissão e prática, um campo cujo capital essencial é a credibilidade [BERGER, Christa. Campos em confronto: a terra e o texto. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1998], em torno de um tipo particular de informação e das técnicas que orientam a elaboração das notícias. Por técnicas entendemos as orientações das empresas jornalísticas de como escrever uma ‘boa’ notícia, por sua seleção temática, apuração (rigor e polifonia das fontes) e redação (devidamente asséptica, neutra e impessoal), em seu modelo pirâmide invertida que, entre outras funções, tenta domar a subjetividade dos relatos e das versões da realidade.

Curiosamente, no entanto, as matérias que versam sobre ciência e tecnologia – C&T não seguem as mesmas rotinas produtivas de apuração das demais. No centro da diferença, a monofonia das fontes.

Qualquer repórter sabe que todas as fontes têm seus compromissos com o capital, ideologia, política ou mesmo objetivos pessoais. Essa certeza demanda cuidados permanentes e estratégias com sua seleção, a começar pela avaliação prévia dos antecedentes da fonte, sua trajetória, interesses e patrocinadores.

Talvez por isso, uma das características do jornalismo científico seja a presença dos mesmos nomes nas entrevistas e matérias. Jornalistas, de modo geral, entrevistam expoentes de cada especialidade, uma vez que é em torno do seu renome que a notícia ganha ‘peso’ e credibilidade. Esses profissionais, há muito acostumados a darem entrevistas e seguros das informações que estão sendo passadas aos jornalistas, costumam ser boas fontes de informações e, não raro, ótimos entrevistados. A dificuldade, nesse caso, é conseguir que o pesquisador explique pacientemente o que esse ou aquele dado significa, ajudando o jornalista a traçar um panorama mais geral para o leitor. Afinal, como já dito, o jornalismo é uma prática mediadora do social.

Discurso desinteressado?

A utilização das mesmas fontes repetitivamente, especialmente as oficiais, é um dos traços constitutivos do jornalismo científico e já responde por boa parte da monotonia da área, mas constitui-se em apenas um dos aspectos da monofonia a que nos referimos.

Qualquer manual de redação ou professor de Jornalismo em faculdades de comunicação dirá que ‘ouvir os dois ou mais lados’ é o mínimo que se espera antes de redigir uma matéria. Ponto e contraponto, estratégia manjada, que tanto ajuda os veículos na construção da credibilidade. Pelo olhar positivo, o famoso ‘outro lado’ é um requisito saudável para práticas mediadoras.

No jornalismo científico, registra-se uma alteração significativa desse quadro. Ao entrevistarem cientistas, técnicos e pesquisadores, os jornalistas esquecem-se dessa máxima, talvez por ser a ciência um ‘discurso competente’ [CHAUI, M. S. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez,1990], ou seja, aquele que pode ser proferido, ouvido e aceito como verdadeiro ou autorizado. É um discurso onde os interlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo o direito de falar, no qual os lugares de fala (quem fala e para quem fala), as circunstâncias e o conteúdo já foram autorizados pela própria competência. O que, nem remotamente, significa que seja um discurso desinteressado ou neutro.

Financiamento e patrocinadores

Contudo, observa-se que não há versões nem contraditório na cobertura de ciência. Ao repórter parece caber apenas a tarefa de ‘traduzir’ para o português corrente a especificidade da pesquisa. Não há polêmica, visto que a posição da fonte não é cotejada com outras que a ela se contraponham ou complementem. Na base de tudo, o senso comum: a ciência é a verdade, irrefutável a não ser por si mesma no decorrer de sua evolução e por seus próprios métodos.

A assepsia que permeia as redações em busca da neutralidade – por técnicas e princípios jornalísticos – potencializa o problema da cobertura em C&T. Em coberturas de outras editorias, em reportagens polifônicas, o repórter, ao produzir sua (do veículo) versão da realidade o faz com o somatório de pontos de vistas e análises possíveis. Tensiona o assunto e realiza (potencialmente) a mediação social a que se propõe o jornalismo.

Nas coberturas de ciência e tecnologia, a (aparente) neutralidade do texto do repórter é, na realidade, a voz da fonte. Um único ponto de vista; fragmentos de um estudo, de um grupo de pesquisadores, de um profissional. Uma visão parcial e diretamente interessada, potencializada pela forma verbal da não pessoa, estratégia utilizada no processo de enunciação jornalística que propicia ao discurso jornalístico, bem como ao discurso científico, a credibilidade da narração dos fatos.

Fatos que apresentados em versões isoladas e únicas não podem, a priori, ser considerados isentos. Seria razoável dizer que a escolha do padrão de TV digital para o Brasil foi puramente técnica? É isenta uma matéria com uma técnica ‘revolucionária’ de um único médico? A análise fractual de um pesquisador pode representar o todo? Por que, então, a cobertura sobre ciência e tecnologia difere da de outras áreas?

Porque até hoje pensa-se em jornalismo científico mais por sua faceta com a ciência, com sua irrefutabilidade, do que pelos preceitos básicos do jornalismo. Pluralidade, versões, questionamentos públicos e mediação jornalística perdem-se pelo caminho da imprensa em todas as editorias. Mas na ciência, tida pelo senso comum como verdadeira e inquestionável, a (des)informação tem outro peso e conseqüência: é credível como isenta e factual, mesmo que há décadas não haja ciência sem financiamento, biomedicina sem patrocinadores, tecnologia sem vencedores.

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Jornalista, doutoranda do PPGCOM da Universidade Federal do Rio Grande do Sul