Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A nudez da Globeleza

Uma propaganda eficiente, que vende o Brasil como um paraíso do turismo sexual, foi criada pela Rede Globo e se repete há anos no período do carnaval.

A campanha foi batizada com o nome de Globeleza e seu autor chama-se Hans Donner, austríaco, designer responsável pelo padrão visual da emissora desde 1975, quando criou o lendário logotipo do globo terrestre reduzido à dimensão de uma tela de TV. Foi o seu primeiro trabalho para a Globo e não parou mais.

Trecho extraído de sua biografia:

‘A criatividade inovadora de Hans gerava as mais incríveis animações, estabelecendo os padrões de todas as produções modernas da televisão. O toque mágico de suas idéias tornou-o popularíssimo, um fenômeno de audiência – nacional e internacional. Revistas gráficas do mundo inteiro editavam seus projetos e incentivavam os designers da televisão européia e norte-americana a seguirem o exemplo da Globo. Ele logo se transformou em `Hans Donner, o homem que todas as emissoras de TV desejam contratar´.’

Mais à frente, conta-se que ele se deslumbrou por uma sambista, uma mulata escultural, Valéria Valenssa, de 18 anos, em 1989, ao vê-la desfilar no concurso para eleger a ‘Garota de Ipanema’. Os dois se tornaram namorados e oficializaram o casamento em 2003.

Poder de imposição de valores

Chamado a criar uma vinheta para o carnaval, em 1992, Hans Donner despiu a namorada, pintou seu corpo com tintas brilhantes para disfarçar a nudez total, a pôs a dar uns passos de samba, e apresentou o trabalho ao todo-poderoso José Bonifácio de Oliveira Sobrinho. ‘Genial!’, reagiu Boni, com a concordância de todo o estado-maior da Globo, entre eles o rei-de-todos, o então quase nonagenário Roberto Marinho.

Por esta época, as imagens da Globo eram limitadas ao território nacional e serviam apenas ao consumo interno. (As transmissões internacionais, via satélite, como hoje, ainda estavam engatinhando.) Bem, nudez no carnaval já era, digamos assim, uma ocorrência natural, incentivada e estimulada pela cobertura dos desfiles das escolas de samba pelas emissoras de TV – Manchete, Bandeirantes e Globo. Havia entre elas um torneio em surdina para destacar a mais ousada na transmissão das cenas de nudez. E era difícil escolher a melhor… ou pior – dependendo do ponto de vista.

Assim, ano após ano, a tal Globeleza foi adquirindo status de ícone da temporada carnavalesca da Globo, ganhou notoriedade nacional e tornou-se símbolo do próprio carnaval brasileiro, pelo poder da emissora na imposição de seus valores estéticos e morais ao comportamento dos telespectadores em geral.

Turismo sexual e prostituição infantil

Eis a melhor prova disso: a vinheta musical que marca os passos da Globeleza no anúncio institucional – ‘Na tela da TV, no meio deste povo, a gente vai se ver na Globo…’ – passou a ser cantada nos bailes e desfiles de blocos, assim como as clássicas marchinhas e sambas nos antigos carnavais.

Ocorre que desde que as imagens da Globo passaram a ser vistas no mundo inteiro, via Globosat, a partir do final da segunda metade dos anos 90, quando a emissora já assumira a exclusividade da cobertura dos desfiles na Sapucaí, a mulata pelada passou a freqüentar também a casa dos europeus, norte e sul-americanos, asiáticos, árabes, israelenses, africanos, canadenses, caribenhos, australianos, neozelandeses e até esquimós.

Dá para se imaginar a reação deles, os gringos – do alegre espanto ao chocante estupor – diante da mensagem subliminar que a tal Globeleza lhes transmite: no carnaval do Brasil, todas as jovens sambam nuas, alegremente, nas ruas e nos salões, durante os dias de folia.

Dessa forma, a Rede Globo, ao exibir a ‘obra de arte’ do mestre Donner ao mundo inteiro, indiscriminadamente, joga por terra o esforço que o governo federal vem fazendo para acabar com o turismo sexual no Brasil, a exploração da prostituição infantil e desfazer um pouco a imagem de um país em que o sexo predomina sobre todas as preocupações sociais.

Mais seriedade e cuidado

Para este ano, assim como nos anteriores, o mal já está feito. A Globeleza está no ar – chama-se Aline Aniceto, é também mulata, com as mesmas medidas da original, que abdicou do papel ao se tornar mãe. Em uma ou outra, a verdade é que a cada ano, o mago Hans Donner economiza mais nas tintas, tornando cada vez mais visível a nudez desavergonhada, para ser exibida na telinha a qualquer hora, onde quer que seja, sem qualquer pudor – arrisco a palavrinha meio em desuso.

Quem sabe para o ano que vem a tal Globeleza venha com um pouco menos de ‘arte’ e mais imaginação de seu criador, para transmitir a alegria do carnaval brasileiro através de outros recursos artísticos, com menos apelação e, digamos, menos sacanagem explícita. Genialidade, todos concordam, é o que não lhe falta. Basta que os irmãos Marinho, Roberto Irineu, José Roberto e João Roberto, sucessores do império global, lhe encomendem a tarefa.

Afinal, eles hão de convir que deva haver mais seriedade e cuidado ao divulgar no exterior um símbolo nacional, que a própria Rede Globo lançou, sem criar constrangimentos aos que se esforçam em fazer o nosso país ser mais respeitado lá fora.

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Jornalista aposentado (Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, Extra) e escritor, autor de nove livros publicados – três deles dirigidos ao público adolescente, adotados como paradidáticos em centenas de colégios