Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A ousadia dos colunistas

Arrogância vem do latim arrogantia, substantivo derivado do particípio presente do verbo arrogare, que significa ‘apropriar-se’, ‘tomar para si’. A raiz arrogante-, no nominativo latino arrogans, genitivo arrogantis, designa ‘aquele que se apropria’. A palavra entrou por via culta – isto é, foi aportuguesada, ao mesmo tempo afrancesada e, daí, anglicizada – no século 16. Frei Diogo do Rosário a definiu: ‘He a altiveza, com que se estima mais do que se bem he’.

A forma inglesa, proveniente da França, é arrogance; aparece em Shakespeare – por exemplo, na sentença ‘I hate not you for her proud arrogance’ (‘não o odeio pela arrogância orgulhosa dela’), da tragédia do Rei Ricardo III.

No século 19, a arrogância era chamada de ‘soberba’; por quase todo o século 20, foi nomeada como ‘presunção’, ‘pretensão’, ‘pedantismo’ e, popularmente, como ‘bestice’, ‘rei na barriga’, ‘nariz empinado’ etc. A palavra, em si, bem como outras do mesmo galho, tinha uso raro em português, quase sempre restrito ao mundo jurídico: ‘Eu (me) arrogo o direito de’, ‘a atitude arrogante do réu’, ‘a arrogância perante a corte’…

Como sua voga atual, no Brasil, decorre do inglês, podemos dizer que retorna por via pseudoculta, isto é, por meio daquela gente da elite que, no esforço de falar português globalizado (prenunciando a Idade Média anunciada em 1977 por Alan Minc e Nora Simon), adora os cognatos. O pessoal que faz, de ‘inicial’, ‘inicializar’; de ‘falarei’, ‘estarei falando’; de ‘desliga’, ‘estará sendo desligado’; que, quando diz que ‘realiza’ alguma idéia, está apenas cogitando pô-la em prática; que substituiu ‘estrangeiro’ por ‘internacional’…

Convocação do além

Pensei nisso, outro dia, viajando de avião, com escalas. Talvez por falta do que fazer, lia jornal buscando, para além do sentido geral dos textos, detalhes reveladores. Era 24 de junho, e haviam distribuído no aeroporto a Folha de S. Paulo. Na página 2, lá estava Eliane Catanhêde. Sua coluna começava assim:

‘Criado na era Vargas para barrar o avanço do comunismo, o trabalhismo floresceu, murchou, dividiu-se e virou… nada’.

Não é arrogante colocar, de passagem, em mero particípio absoluto (que, no meu tempo de colégio, chamava-se de ‘ablativo absoluto’), uma afirmação tão ousada quanto essa sobre a intenção de Getúlio Vargas ao fundar o PTB, em 15 de março de 1945? Será uma teoria criada em São Paulo, daquela série de enunciados antigetulistas que começou com a derrota dos constitucionalistas, em 1932, e durou até Fernando Henrique anunciar (e não conseguir de todo) pôr um fim à ‘herança varguista’? Em que sessão espírita Getúlio confidenciou à articulista suas motivações secretas?

No mesmo jornal, na página 3 do caderno ‘Dinheiro’, ainda no capítulo das arrogâncias, este trecho de Luís Nassif:

‘A idéia [da integração competitiva] foi retomada no governo Collor e resultou no mais consistente programa econômico dos anos 90, com redução gradativa das tarifas de importação, ao mesmo tempo em que se lançavam as bases para a melhoria da competitividade das empresas brasileiras – por meio da criação do Programa Nacional de Qualidade e Produtividade.

‘Esse movimento resistiu ao governo Itamar e foi sufocado pela apreciação do real, em julho de 1994. De lá para cá, o projeto nacional foi substituído por um pensamento raso, simplificador, do grupo de economistas que dominou o embate ideológico a partir da mística dos pacotes econômicos.

‘Agora, é a própria esquerda, modernizada , que começa a se articular em torno de pontos concretos para a montagem de um projeto nacional’.

Trocando em miúdos: ao contrário do que muitos pensam, a política do governo Lula não continua a de Fernando Henrique Cardoso, que já em 2001 buscava estimular exportações. Ele retorna o ‘projeto nacional’ de Fernando Collor e, aí ao contrário do que todos poderiam imaginar, isso é bom.

Adam Smith, David Ricardo e Carl Menger, se convocados do além para uma apreciação da história recente brasileira, talvez não ousassem chegar à mesma conclusão do articulista. E certamente seriam menos enfáticos.

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Jornalista e professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina