Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A pauta é o ‘corruptor’

Que o Brasil é a terra da corrupção, que os governantes usam o Estado a seu favor e que os políticos usam a política para preservar seus interesses, qualquer brasileiro minimamente esclarecido já sabe. Afinal, esta lógica parece estar na própria essência cromossômica da nação (desde a instalação das capitanias hereditárias) e na singular formação do povo brasileiro, filho bastardo de Macunaíma e do sincretismo cultural e religioso.

O Brasil é uma nação essencialmente patrimonialista, assistencialista, coronelista, escravocrata (oficial ou extra-oficial) e “estatista”. O brasileiro é conhecido por ser um homem “cordial” (que vive em paz e harmonia em berço esplêndido) e a tradição mais valorizada é a de achar-se um “jeitinho” para tudo (sempre tentando driblar a moral, a lei e a fila antes de se agir corretamente). Não podemos esquecer, é claro, a atávica predisposição do brasileiro para “levar vantagem em tudo”.

O tempo tratou, aliás, de construir a imagem do Brasil como um país de praias paradisíacas, futebol, samba e carnaval (nem sempre, mas quase sempre). E construir a reputação de que o Brasil é um país usado para turismo sexual, para lavar dinheiro internacional, para a compra de crianças ou de órgãos ou para a exploração de recursos naturais ao arrepio da lei.

Todos estes traços do Brasil são características marcantes, embora trágicas, de nosso cotidiano. E o resultado é que, todos os dias, a pauta da corrupção aparece nos jornais, sempre de forma intensa e obsessiva.

A “construção social da realidade”

Todavia, mesmo sendo renitente e incurável, a imprensa não deixa recrudescer seu ânimo contra as forças da banalização da informação. Embora a lógica da corrupção tente mostrar que a luta contra os corruptores é infinita e inglória, a imprensa não deixa nunca de correr atrás da informação (mesmo que pareça que o cachorro está tentando pegar seu próprio rabo).

O único problema deste processo de banalização da informação está no perigo do repórter, do editor ou diretor de redação acharem que a “rotina” sistemática da corrupção estabelece a agenda midiática e social por si mesma. Quando as coisas entram no modo automático, a realidade parece que reproduz as notícias de modo mecânico e acrítico, independentemente da vontade ou da verdade jornalística.

Nesta lógica, muitas vezes, a notícia da corrupção torna-se um dever moral e social maior do que o dever jornalístico. Instala-se a lógica da notícia-escândalo, que ganha espaço nos jornais não porque a notícia seja fundamentalmente importante, mas porque a sociedade está (de certa forma) “viciada” em receber notícias escandalosas. Os jornais cumprem assim a missão de administrar homeopaticamente doses de medicamentos para saciar a ansiedade social por remédios.

Isto pode acabar deturpando a lógica universal do jornalismo. Parece, às vezes, que os próprios jornalistas substituem os critérios de noticiabilidade (essencialmente técnico) pelos critérios de moralidade (essencialmente prescritivo). Ao final, a automatização do processo de “noticiação” (deduzida) transforma-se num processo de escandalização (induzida) e a imprensa começa a realizar o processo de “construção social da realidade” a partir da lógica do “samba de uma nota só” (isto é, repete sempre a mesma lógica e a mesma notícia).

A pauta mecânica

A pauta da imprensa do Brasil, nos últimos tempos, tem sido o processo de corrupção no governo e nas empresas estatais. Os jornais reproduzem, dia a dia, informações novas sobre os fatos, as pessoas ou sobre a sistemática da corrupção. Invariavelmente, a pauta dos jornais está centrada sobre a realidade política do processo, com foco sobre os governantes, os políticos ou sobre os procedimentos do Ministério Público ou da Polícia Federal.

A imprensa noticia todos os dias as informações sobre os descalabros cometidos pelos corruptos. Mas, como já se acostumou a noticiar escândalos sempre da mesma forma, esquece que a grande novidade deste processo histórico está no fato de que os corruptores foram pegos com “a mão na massa” e estão, em grande número, atrás das grades. É o caso da presidente da empreiteira OAS, Léo Pinheiro, o presidente da UTC, Ricardo Pessoa, o presidente da Camargo Correa, Dalton Avancini, o presidente da Queiroz Galvão, Ildefonso Colares Filho, o vice-presidente da Mendes Júnior, Sérgio Mendes, além de executivos da Engevix, Andrade Gutierrez, Odebrecht, Toyo Setal etc.

Juntas, as empresas envolvidas representam, certamente, a maior fatia do PIB empresarial do Brasil (uma das maiores do mundo) e alimentam a casa de máquinas da engrenagem capitalista deste que é o maior país da América do Sul. São nada menos do que 232 empresas investigadas e 150 pessoas envolvidas na Lava-Jato. Os crimes tratam, sobretudo, de lavagem de ativos, tráfico internacional de drogas, crimes contra o sistema financeiro nacional, corrupção, formação de organização criminosa, além de muitos outros.

A cobertura da imprensa está centrada, sobretudo, em notícias ou reportagens sobre políticos do governo, dirigentes de estatais, tesoureiros, doleiros, laranjas, além de suposições sobre envolvimentos de políticos famosos, sem mandato, ou de partidos políticos, além de um bate-boca e de um lenga-lenga anti-PT, anti-PMDB, anti-PSDB, anti-Dilma, anti-FHC, que não contribui em nada.

Infidelidade à verdade

Em síntese, a pauta da imprensa está dirigida para os corruptos, enquanto deveria estar examinando tanto os corruptos quanto os corruptores. Talvez se devesse estar olhando o que há de mais inédito na história do Brasil: a prisão de empresários poderosos, donos de fortunas avaliadas em bilhões e bilhões de dólares. A imprensa não descreve a vida destes empresários; como eles chegaram aonde chegaram; como eles conquistaram a fortuna deles; quando começaram realmente a se corromper; quais os negócios deles; quem são seus sócios; onde está o dinheiro deles; em que atividades da economia atuam; quais as denúncias específicas sobre eles; quem realiza os negócios sujos para eles; em que votaram; para quem doaram dinheiro; onde investem dinheiro etc…

As empresas-jornalísticas parecem ter se acostumado (ou anestesiado) com a corrupção, ou parecem não querer revelar a realidade sobre os empresários corruptores e as empresas-corruptoras. Talvez, as duas coisas juntas. As únicas notícias sobre os empresários ou sobre estas empresas surgem das revelações feitas em depoimentos ou das investigações do Poder Judiciário, do Ministério Público ou da Polícia Federal. Não há pautas inéditas nem furos de reportagem. Não há disputa pelas capas de revista nem por entrevistas ou reportagens exclusivas.

A imprensa pode acabar perdendo o passo da história e pagar “caro” pela infidelidade à verdade. Afinal, as empresas jornalísticas (mesmo sendo empresas) não podem esquecer que o jornalismo trata da realidade e da verdade e que, se esta lógica acabar, os indivíduos poderão mudar de canal, virar a página ou acessar outro site.

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Leandro Marshall é jornalista, escritor e professor de Jornalismo