Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A profissão mais antiga do mundo

Tem razão quem diz que fazer jornalismo é fácil. Basta uma pergunta, uma resposta, um papel e um lápis. Ou um bom ouvido quando o papiro e o grafite não haviam sido inventados. E ainda gestos, desenhos rupestres antes disso. E por que custamos tanto a ler, ouvir, ver uma boa entrevista?

Foi a sensação que deu o repeteco da entrevista de Geneton Moraes Neto com o general Leônidas Pires Gonçalves, morto no feriado de Corpus Christi, levada ao ar na Globonews pouco depois das 11 da noite de quinta-feira (4/6).

Geneton Moraes Neto

Geneton Moraes Neto

Chefe do Estado Maior do I Exército no Rio de Janeiro em plena ditadura de 1974 a 1977, o general tinha nas mãos o DOI-Codi e o período mais sangrento da história recente do Brasil.

A fórmula da entrevista é fácil: Geneton perguntava, o general respondia, as câmeras registravam. E o que vimos e ouvimos foi uma história do Brasil ao contrário. O contraponto é interessante: enquanto a Comissão da Verdade extrai pela primeira vez relatos bárbaros de tortura, o general nega a violência do Exército. “Nunca houve tortura… eles dizem que foram torturados para pegar a Bolsa tortura.”

O general, morto aos 94 anos, já negava os horrores dos porões da ditadura com toda convicção. A gravação foi feita em 2010, vinte anos depois do fim da ditadura. “Toda essa história é invenção da imprensa, infiltrada pela esquerda. Nós não somos bandidos, somos soldados de luta.”

Ele garante que Vladimir Herzog se suicidou na prisão porque estava apavorado, intimidado, não tinha preparo de militante, teve medo. O general quase diz que por isso não respeitaram o prisioneiro. “Mas não houve tortura. É duro de ouvir, não é?” Mesmo quando Geneton lembra que outros presos ouviram gritos de Herzog no suplício, o general diz: “Uma coisa ou outra pode ter havido, mas ele se suicidou… e por que mataríamos? Ele não tinha importância”.

Na história do Brasil do general não houve exilados e sim fugitivos, como o ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes e o sociólogo e cientista político Fernando Henrique Cardoso, ambos cassados – “que viajaram para fora do país porque quiseram”, segundo ele, para ir estudar e viver muito bem “em Cuba, na Albânia, na Rússia”. Segundo Leônidas Pires Gonçalves, o país hoje deveria se ajoelhar diante dele para agradecer: “Nós levamos o Brasil a ser o que é hoje, o Exército não foi intruso, o povo pediu a revolução de 1964 e nós fizemos, nós vencemos a guerra”.

Quando o jornalista pergunta a que preço, por quantas mortes, provocando quanto sofrimento e o sacrifício de uma geração, o general justifica: “Guerra é guerra, o regime militar salvou o Brasil de ser uma ditadura comunista”.

Quando Tancredo Neves morreu, o general já havia sido escolhido para ministro do Exército e conta como, no meio da comoção do desaparecimento daquele que seria o primeiro presidente civil em 21 anos (1985), foi ele quem empurrou o relutante vice-presidente José Sarney a assumir o posto. “Quem assume é o Sarney”, determinou, diante da cúpula de políticos reunida no hospital da internação de Tancredo. O general não diz, mas o que o país mais temia era um retrocesso, que o Exército fizesse uma nova golpada e continuasse no poder.

Muito fácil fazer jornalismo. Como disse o ministro do Supremo Tribunal Gilmar Mendes, ao decidir pelo fim do diploma da profissão, jornalismo qualquer um faz, a pessoa só precisa ter os mesmos dotes de uma boa cozinheira. Diante do banquete das entrevistas de Geneton Moraes Neto seria bom saber há quanto tempo o ministro come feijão com arroz, e não saboreia uma festa de Babette, que aliás foram rareando depois da sua decisão.

Fácil, mas há quanto tempo não lemos, vemos, ouvimos uma entrevista básica, uma reportagem investigativa, um marco no nosso cotidiano como esta entrevista de Geneton repassada no mesmo dia da morte do general sobre um período negro do Brasil? Que por falta de bom jornalismo a geração nascida pós-1985 não deve fazer ideia do que foi aquele Brasil, a não ser que existam mais Genetons, mais profissionais com talento de fazer um jornalismo tão fácil e tão eficiente.

Leônidas Pires Gonçalves

General Leônidas Pires Gonçalvez

Bastidores da entrevista, por Geneton Moraes Neto

No mesmo dia (4/6) da morte do general, Geneton Moraes Neto fez anotações do seu encontro com o general e, jornalista com a mão na massa o tempo inteiro (aliás, como o ministro Gilmar associou) conta os bastidores da entrevista aqui:

“Tentei cumprir, ali, o papel de repórter: o de tentar levar ao público ‘diferentes visões do mundo’ – sem exercer ‘patrulhagem ideológica’ sobre o entrevistado. Nem sempre é fácil. Diante do general, fiz o que fiz diante de ex-guerrilheiros – por exemplo: perguntas. Ponto. Que outra coisa um repórter pode fazer?.

“Um detalhe curioso: o general só aceitou dar entrevista depois da terceira tentativa. A princípio, relutou, disse que já tinha falado antes, mas insisti, apelei para a vaidade do possível entrevistado: disse que seria importante que ele contasse, com detalhes, o que aconteceu na noite em que o presidente eleito Tancredo Neves foi internado às pressas num hospital de Brasília, na véspera da posse. O general, como se sabe, se aproximou de uma roda de políticos que discutiam, no hospital, quem deveria tomar posse: se o vice-presidente José Sarney ou se o presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães.

Ainda no telefone, Leônidas contou que o debate entre os políticos se encerrou quando ele disse que não havia o que discutir: pela Constituição, Sarney deveria assumir. (Tal interpretação não era unânime entre os políticos ali presentes. O senador Pedro Simon, por exemplo, achava que quem deveria assumir era Ulysses, na condição de presidente da Câmara. Se Tancredo não iria tomar posse, o vice também não poderia.) Dali, o general ligaria para José Sarney, já de madrugada. Quando notou que Sarney relutava em assumir o posto, Leônidas cortou a conversa algo bruscamente. Disse ao relutante Sarney que já havia problemas demais a serem resolvidos. Pronunciou, então, a frase que Sarney, tempos depois, disse que iria usar como título de um livro de memórias até hoje não publicado: ‘Boa noite, Presidente’.

“Em suma: Leônidas terminou cedendo ao meu argumento de que valeria a pena gravar ali, em 2010, uma entrevista sobre os vinte anos do fim do regime militar. Um dia antes da gravação, liguei para o general, para confirmar. Leônidas reagiu: ‘Você se esqueceu de que combinou com um milico! Se eu disse que é amanhã às cinco da tarde, vai ser amanhã às cinco da tarde!’

“Depois, tivemos algumas conversas por telefone – e alguns encontros casuais, pelas ruas do Leblon.

“Nem faz tanto tempo, encontrei com o general no corredor do shopping Vitrine do Leblon, na Avenida Ataulfo de Paiva. O general morava perto dali. Era um final de manhã. Estava sozinho. Caminhava com uma firmeza surpreendente para um nonagenário. Conversou comigo, animado.

“Fiz umas anotações assim que cheguei em casa. Dou uma checada agora: o encontro foi no dia 5 de junho de 2014 – há exatamente um ano, portanto.

“Palavras textuais do general – numa conversa que, obviamente, não era uma entrevista:

>> ‘Tive o mesmo professor de Luís Carlos Prestes. E ele me disse: ‘Aquele foi o aluno mais brilhante que já tive’. Eu digo que Prestes é o herói sem vitória. Tudo em que ele entrou deu errado’.

>> ‘Veja Lula: lá no Rio Grande do Sul, se usa a palavra ladino – é mais do que sabido. É ladino!’

>> ‘E essa história do mensalão? Sempre houve compra de voto. Você acha que não houve compra de voto para a eleição de Fernando Henrique? Mas sempre foi pontual. A diferença é que, com o mensalão, foi sistemático.’

>> ‘Falam da espionagem dos EUA. Todo mundo faz – inclusive a gente!’

>> ‘Sua virulência intelectual é igual à minha! Igual! Igual! E eu até brinquei na entrevista: disse que você tinha um laivozinho de esquerda…’

>> ‘Devo ter recebido uns 400 telefonemas por causa da entrevista. E sabe quantas vezes reprisaram? Umas cem. Você tem a estatística oficial?’ (Aqui, o general exagera no número de reprises da entrevista).

>> ‘Noventa e três anos – e com a memória de vinte anos atrás! E mais: três vezes por semana, vou para a academia.’

“Aproveitei para perguntar se o Alto Comando indicava informalmente ao presidente da República um nome de militar que deva ser promovido: ‘Não. Porque, ali, todo mundo quer. É tudo candidato! Fernando Collor me procurou em casa, depois de eleito. Queria saber se eu indicava um nome. Eu disse que não. Mas poderia citar três’.

>> ‘Disse a um amigo que tinha encontrado com você num restaurante. Perguntaram se a gente tinha conversado. E eu: ‘Não, porque as meninas tomaram a cena!’ Lembranças a elas!” (Aqui, o general se refere a duas crianças que “participaram” de outro encontro casual com ele)

“Por fim: faz três meses, voltei a ligar para o general. Propus a gravação de uma reportagem em que ele dialogaria com um ex-guerrilheiro. Poderia ser um diálogo importante: tanto tempo depois, personagens com visões radicalmente opostas poderiam debater, civilizadamente, os chamados ‘anos de chumbo’. O general disse que preferia não participar do programa, mas, ainda assim, perguntou quem seria o ex-guerrilheiro convidado para a reportagem. Pareceu-me levemente tentado a aceitar o convite. Eu disse a ele que poderia ser, quem sabe?, Cid Benjamin – um dos participantes do sequestro do embaixador americano. Citei na hora o nome de Cid Benjamin – com quem tinha feito, igualmente, uma entrevista para o Dossiê Globonews. O general comentou: ‘Vou dizer uma coisa que você não sabe: ele foi prisioneiro meu’. Disse-me que tinha lembrança de ter visto a mãe de Cid e César Benjamin – bem jovens à época da guerrilha – preocupada com os filhos. ‘Eram meninos!’ O general aproveitou para fazer uma tese de inesperado teor psicanalítico: achava que os dois tinham entrado para a luta armada provavelmente porque eram filhos de pais separados. Tempos depois, comentei com o próprio Cid o que tinha ouvido do general Leônidas. Cid riu, divertido, com a investida psicanalítica do general.

“Leônidas Pires disse que iria sondar amigos, para ver se algum toparia participar de um possível diálogo com um ex-guerrilheiro.

“Não voltamos a nos falar.”

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Norma Couri é jornalista