Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A pulga tinha razão

Pulga em latim é pulex. A pulga pula. E, atrás da orelha, a pulga irrita, aguça a curiosidade.

Fazia tempo eu sentia uma pulga atrás da minha orelha, mas não queria admitir sua presença. Enganava-me, fingia não sentir a coceira. Tomando banho todos os dias, e no verão duas vezes ao dia… como poderia eu carregar uma pulga em lugar tão incômodo?

A pulga não estava incluída na minha falta de planos. Pulgas são uma desinformação forjada pelos sofistas, mentira da grossa, e da fina também, invenção de dissidentes, coisa de ressentidos da vida.

Eu lia os jornais, ouvia as notícias, e tudo me parecia correr anormalmente normal, harmonicamente caótico. Guerras, acidentes, atentados, revoltas, nada disso soa estranho, faz parte da parte que nos toca neste mundo. O escândalo não provoca escândalos em pessoas bem formadas. Descobriram um planetóide, novos casos de corrupção, um novo filme bate novos recordes de bilheteria, alguém morreu, gente famosa se casa e se descasa e se casa de novo – por que deveria eu carregar a pulga?

Carregar a culpa…

Alguns amigos (loucos certamente) me escreveram, avisando que a pulga não é à toa, que a pulga pode, a pulga é o único ser capaz de nos revelar o segredo dos segredos.

Escreviam eles: ‘Observe a imprensa, e observe também os observadores da imprensa. Observe-se enquanto observa aqueles que observam. Reflita antes de pensar. Faça silêncio antes de calar. Sonhe antes de escrever.’

Outras mensagens enigmáticas chegaram, e eu as deletei sem dó nem piedade. Mas ficaram encravadas atrás de minha orelha.

A pergunta pulguenta é a seguinte: ‘E se por trás dos números, e por trás das palavras, e por trás dos conceitos, e por trás do que há por trás houvesse duas ou três vozes conversando a portas fechadas, decidindo com o que eu devo me preocupar, a que horas devo pensar isso ou aquilo, a que horas devo, até mesmo, me indignar com a corrupção, com o descalabro etc.?’

A pulga tinha razão.

A pulga já fez (clandestinamente) cursos de jornalismo, de propaganda, estudou a manipulação da palavra, infiltrou-se nos grupos secretos, pulou para lá e para cá, e por isso descobriu, entendeu, apreendeu.

A pulga atrás da orelha tem as respostas. Devo pegá-la com carinho, torturá-la até arrancar de suas entranhas a verdade que eu não quero ouvir.

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Doutor em Educação pela USP e escritor