Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A revolução criativa no Brasil

No final dos anos 1950 começou a gestação da revolução criativa que marcaria o Brasil na década seguinte. Na política, a moralização dos costumes produziu um Jânio Quadros que, logo depois, em agosto de 1961, decepcionaria seus mais de 6 milhões de eleitores com uma renúncia até hoje nunca bem explicada, levando os militares a tentarem um golpe militar que foi adiado por quase três anos graças à determinação do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, a nossa Dolores Ibarruri. Brizola liderou o movimento legalista e não permitiu que o bloco militar passasse em 1961, dando posse ao vice de Jânio, João Goulart, o Jango, que foi finalmente deposto em 1º de abril de 1964.

Nós, civis, e o país como um todo, ganhamos assim quase mais três anos de efervescência criativa, liberdade e expressividade em todas as artes, na literatura, no teatro e no cinema, nas artes plásticas, na arquitetura, na música popular, no jornalismo e na publicidade.

Foram anos de tanto vigor criativo que atravessaram parte da ditadura militar e chegaram até o início dos anos setenta, sendo O Pasquim e os filmes de Glauber Rocha, por exemplo, alguns filhos da revolução criativa que nasceram já nos ‘anos de chumbo’.

A descontração na poesia

A música popular brasileira, no final dos anos cinquenta, começava a trilhar os caminhos que acabaram desembocando na bossa nova. Compositores como Dolores Duran, Billy Blanco, Johnny Alf, Edson Borges (o querido e também jinglista Passarinho), Maysa, Miguel Gustavo e tantos outros foram autores de diversos sucessos de público e de crítica que acabaram conduzindo nossa MPB para Vinícius, Tom, João Gilberto e muitos mais no movimento bossanovista.

No jornalismo, a entrada em cena da Última Hora no início da década de 50 terminou por gestar, anos depois, a revolução, verdadeira revolução que foi o Jornal do Brasil, até então um jornal quase só de classificados, que ocupavam até mesmo parte da sua primeira página, num sucedâneo caboclo e bem sucedido, em todas as acepções, do Le Monde francês. O que, também anos depois, acabou produzindo o também revolucionário Jornal da Tarde, de Murilo Felisberto e companhia.

Brasília e a Pampulha, para ficarmos só em dois exemplos do gênio de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, mostraram a que vinham nossos arquitetos. Assim como no teatro, com o Arena e o Oficina e Gianfrancesco Guarnieri e Vianinha e Dias Gomes etc. etc. E o cinema novo, com Nelson Pereira dos Santos, Roberto Santos (nenhum parentesco entre eles, só a genialidade), Sérgio Ricardo (que, depois, destacou-se na MPB) e por aí afora.

Na literatura foi a vez de Vinícius de Moraes (sempre ele!) desembolorar a poesia pedante de supostos príncipes e reis do pedaço, com a descontração também presente nos versos de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Carlos Pena Filho e muitos, mas muitos mais. Nas artes plásticas, foi o fim do quadro como expressão pictórica única, o que acabou nos levando a Ligia Pape, Rubens Gerchman, Hélio Oiticica e tantos mais que produziram objetos de arte e não mais apenas e tão somente o espaço de uma tela.

Os fantasminhas coloridos

Como se sabe, a publicidade ou propaganda (entre nós tornaram-se sinônimos, ao contrário dos países de língua inglesa, por exemplo, que consideram a nossa propaganda como advertising e o termo publicity como algo próximo a notícia, assessoria de imprensa). Bem, voltando à vaca fria, a publicidade ou propaganda não exerce uma função modificadora da sociedade e muito menos do social. Ela é apenas um reflexo do que está por trás das modificações que a mesma sociedade assume. Sendo assim, como um bom espelho, a propaganda brasileira, no final dos anos 50, passou também a associar-se às transformações que o país impunha.

É preciso, hoje, distantes quase meio século daqueles tempos, dar o devido crédito ao publicitário e jornalista Marcus Pereira, cuja coluna dominical no Estadão começou a mostrar a todos quantos militavam na área os anúncios que estavam fazendo lá, nos Estados Unidos, naquele início da revolução criativa. Foi lá, na coluna do Marcus Pereira, simplesmente denominada ‘Publicidade’, que nós, a imensa maioria dos jovens aspirantes a oficiais da comunicação, tomamos conhecimento de alguns ‘clássicos’ do advertising.

Como o anúncio da DDB para um fabricante de embalagens, ilustrado por um gato saindo de uma caixa e o título: ‘Quem tirou o gato pra fora da caixa?’, a propósito de anunciar um papelão que não tinha mais a aspereza até então comum às embalagens de papelão. Ou, do magazine Orbach´s, o igualmente genial ‘Descobri o que há com a Joana’, que falava, em linguagem dúbia, de uma certa dona de casa que, apesar do marido não ganhar muito, estava sempre vestida na última moda. Claro, porque a Orbach´s vendia o bom e barato. A ilustração, coincidentemente, era também de uma gata de chapéu e piteira, como era costume naqueles anos dourados. Ou ainda de um fabricante de lençóis coloridos (a galera atual não sabe, mas lençol, para as gerações que me antecederam, era sempre branco, nada de cores), com três garotinhos vestidos de fantasma, com o título ‘Os fantasminhas mais elegantes da cidade’.

Um eufemismo para ‘você’

A divulgação que o Marcus fazia na sua coluna ajudou muito o Paulo Gorodetchi a vender revistas e anuários americanos de propaganda e influenciou em grande escala a propaganda brasileira, a começar da agência onde ele trabalhava no atendimento, a Inter-Americana de Publicidade, do Armando D´Almeida (mais tarde incorporada pela Salles), dirigida em São Paulo por Carlos Knapp e tendo na criação o próprio Knapp e, em épocas diferentes, José Leão de Carvalho, Enio Mainardi, Harding Gimenez e, imodestamente, este locutor que vos fala, todos profissionais de primeiríssimo time, apoiados por diretores de arte igualmente de primeiro time, como Augusto Oliveira e Lelio di Pillo.

Além da Inter, a Standard (muito antes de virar Ogilvy), dirigida pelo genialíssimo e precocemente falecido em desastre aéreo Ivan Meira, também botava as manguinhas de fora, através do gênio de José Kfouri, um dos melhores professores que já tive na vida (e ainda dizem, burramente, que quem sabe faz, quem não sabe ensina!), redator sensacional, usava uma página dupla de revista, em cores, para o extrato de tomate Peixe, com três tomates lindamente fotografados em sequência por Chico Albuquerque, dizendo, com a maior simplicidade, em baixo de cada tomate, ‘Tomate é cor/ sabor/saúde’. Simples, direto, uma síntese de criatividade para aquele final dos anos cinquenta, em que os anúncios ainda tratavam o leitor de V. Sa. ou de Sr. ou Sra., tanto assim que os próprios anúncios da inovadora campanha da Volkswagen hesitavam em adotar um tratamento menos cerimonioso, utilizando-se do eufemismo de abreviar você para v. – isso mesmo, até na campanha revolucionária da Volks substituía-se por v. a palavra você.

A ‘estufa’ do Alex

Porém a agência que mais marcou a virada criativa da propaganda no Brasil foi, sem dúvida, a Almap ou Alcântara Machado, do boa praça Zé de Alcântara e do Alex Periscinoto, criadora das faladas campanhas da Volkswagen. Mas, talvez, o anúncio que mais representa a bossa nova na propaganda seja o das canetas Schaeffer para o dia da secretária, uma espécie de ‘Desafinado’ para a nossa profissão. A ilustração era o rosto de um executivo, esculpido em madeira, com o título: ‘Com que cara você vai enfrentar a sua secretária no dia 30?’ O dia 30 do título se referia a 30 de setembro, o dia da secretária, instituído no Brasil pela Remington, na época líder do mercado de máquinas de escrever, hoje consideradas dinossauros por todo mundo. E o texto, provavelmente feito pelo Sérgio Toni, sugeria dar um conjunto de canetas para a fiel secreta. Ah, e a expressão cara de pau sobrevive até hoje, porém certamente sem a mesma força que tinha na época.

Mas a Alcântara não parou nesse anúncio de oportunidade, foi muito além. O Alex, munido de imensa cara-de-pau e sem, na época, falar picas de inglês, foi para Nova York visitar a DDB, onde, segundo ele contava, pedia desculpas para uma dupla de criação, sentava num canto da sala e ficava observando o trabalho dos caras, sem nem piscar os olhos e sem abrir a boca, of course. No final do período, pedia licença pra catar os roughs jogados no lixo, comparava com o produto final feito pela dupla e guardava tudo numa pasta. E assim ia fazendo com duplas diferentes.

Logo ao chegar à DDB, no primeiro dia, o Alex ia ao rádio/TV e encomendava uma cópia do rolo de comerciais, que já estavam prontinhos no dia da volta para o Brasil. Tudo isso, claro, com a aprovação do próprio William Bernbach, que se encantara com aquele publicitário exótico, vindo de um país mais exótico ainda.

Chegando aqui, o Alex reunia a tropa toda da criação, num sábado (!) que era pra ninguém perder dia de trampo, exibia os comerciais, fazia comentários, contava causos em cima de cada case e fazia o que ele chamava de ‘estufa’, para fazer florescer os talentos criativos. Graaaaaande Alex, você possibilitou antecipar nossos Neils, Fontouras e Washingtons em algumas décadas, ou no mínimo por diversos anos.

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Fundador e diretor da JAC Assessoria de Imprensa