Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A essencial senhora Felizardo

A leitura diária de jornais pode causar urticária, enxaqueca e náuseas, mas ainda não foi inventado outro processo para captar e selecionar notícias sobre acontecimentos que consideramos relevantes para nossas decisões pessoais ou interessantes para nosso entretenimento.

Pelo menos para as gerações habituadas à leitura e à observação linear das correlações entre os muitos pontos da realidade e dependentes de relações de causa e efeito para significar o mundo, a imprensa – como a conhecemos tradicionalmente – ainda é necessária.

Os agregadores de elementos de informação, do tipo Google, ainda não conseguem substituir o trabalho de jornalistas organizados em uma redação física ou virtual, com funções especializadas e áreas específicas de interesse. Mesmo que milhões de pessoas em todo o mundo passassem a alimentar o grande sistema de informações em rede, ainda seria necessária a função dos filtros capazes de agrupar as informações para lhes dar sentido e contexto.

Claramente, as redes sociais digitais se desenvolvem numa direção distinta à que convencionamos chamar de mídia. Em vez de mediação, os sistemas digitais produzem relacionamento.

Os programas de computador, por mais avançados que sejam, ainda que capazes de identificar imagens e produzir textos correlatos, estão longe de se equiparar ao senso crítico, à ironia e até mesmo à malícia presentes no trabalho jornalístico. E mesmo que venham a ser aperfeiçoados a ponto de substituir o raciocínio humano, também eles podem ser condicionados a atuar exclusivamente dentro do espectro ideológico definido pelo patrão.

Assim, o quadro nos induz a pensar que não é apenas o modelo de negócio da imprensa que está em processo de mudança: o próprio conceito de mediação é que parece estar se tornando obsoleto.

A imprensa tradicional já não influencia a sociedade como no final do século passado porque os mais jovens e os novos agregados ao mundo social ativo têm à disposição instrumentos tecnológicos para acessar a realidade em torno de seus campos sociais sem a necessidade de mediadores humanos organizados em corporações.

Essa mudança não ocorre apenas em função da tecnologia, mas também e principalmente porque essa tecnologia facilita e estimula o relacionamento.

Virada para a Lua

Se convencionarmos que a informação é um produto do relacionamento e não um instrumento para a socialização, então teremos que admitir que a mediação é uma aberração, pelo menos nos termos em que é realizada classicamente.

Submetido à análise complexa, esse quadro provoca a suspeita de que o aparente desvanecimento da influência da mídia tradicional se deve a algo mais do que a mera disponibilidade das tecnologias digitais de informação e comunicação. Somos seres complexos: homo sapiens, homo erectus, mas também somos seres sociais que convivem em rede, e para isso precisamos saber o que se passa com os outros seres humanos, para avaliarmos nossa própria condição.

Nesse contexto, não há lugar para instituições cuja função seja organizar essa troca, interferindo arbitrariamente na busca do ser humano pela compreensão de si mesmo.

A rigor, não há fundamento na hipótese de que um grupo de profissionais treinados para produzir mensagens, sob condicionantes organizacionais e de interesses de negócio, seja capaz de definir quais elementos da realidade são importantes para o ser humano representar o mundo ao seu redor e, com isso, entender a si mesmo – ou, ao contrário, entender a si mesmo para melhor desempenhar seu papel social.

Toda essa lucubração é provocada pela leitura diária de notícias cujo valor não estamos acostumados a questionar. O que fazer das informações publicadas na quarta-feira (6/2), quando a imprensa nos fala das dificuldades da Petrobras, da estreia de um novo técnico da Seleção de futebol, dos entreveros entre Legislativo e Judiciário, dos novos dirigentes do Congresso, de investimentos e denúncias, da crise permanente no Oriente Médio e dos preparativos para o carnaval? Em que, realmente, elas nos ajudam a destrinchar a realidade?

Veja-se, por exemplo, a notícia postada às 17h40 de terça-feira (5/2) no portal da Folha de S.Paulo, o jornal brasileiro que mais investe na mudança para o ambiente digital:

“Carine Felizardo vira sua parte mais cobiçada para a Lua em novo ensaio”, diz o texto, misturado a outros temas, como a votação da lei sobre casamento gay na Inglaterra, taxações sobre ganhos de investimento e direitos do consumidor.

Podemos supor, então, que a decisão da senhora Felizardo, eleita Miss Bumbum 2012, de exibir seus atributos, passou pelo filtro dos fatos que precisamos conhecer? Talvez os jornais, revistas e os sites informativos devessem trazer, obrigatoriamente, uma tarja do Ministério da Saúde: “Este produto pode fazer mal à sua sanidade”.