Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ainda sobre a entrevista do pseudo-Marcola

Sinal dos tempos e da sina brasileira. Antigamente usávamos o adjetivo pseudo para textos clássicos aos quais durante algum tempo se atribuiu uma autoria que depois se verificou ser falsa: o pseudo-Plutarco, o pseudo-Plotino. No Brasil temos agora o pseudo-Marcola. Também eu fui vítima dessa confusão internética que – nunca descobriremos como, com que objetivos nem por quem – atribuiu ao bandido Marcola uma apocalíptica entrevista em O Globo. Agora sabemos que no original foi obra de ficção de Arnaldo Jabor – como tal, brilhante, irretocável. Inclusive nas improváveis mas afinal convincentes provocações estéticas. O pseudo-Marcola é quase um poeta: ‘Meus comandados … são fungos de um grande erro sujo’. ‘Chapeaux bas, messieurs!’ – como disse Schumann diante de Chopin.


Entretanto, enquanto acreditei que a entrevista fosse verdadeira (felizmente, não mais que algumas horas), o que mais senti foi tristeza e medo. Tanta inteligência, tal precisão na anamnese e diagnóstico, domínio tão absoluto da palavra, conhecimento de causa, do ser humano e da história, porém num desesperado, convicto de que não existe solução e de que o inferno neste país é inevitável: seria esse, enfim, o nosso destino de líder revolucionário? Mas para os verdadeiros líderes revolucionários a esperança não constitui pré-requisito? Ademais um líder, lembremos, confessadamente criminoso e cruel, capaz de qualquer ato em função de seus propósitos, que reconhece mandar liquidar e colocar no ‘microondas’ as peças ineficientes de sua máquina de droga e morte? Um hitlerzinho porém com o sinal trocado – porque fundado em verdades?


Tiro errado


Tive tristeza e medo. Medo de classe? Um pouco, sem dúvida. Nunca passei fome. Financiado por meu pai, pude aprender inglês, francês, espanhol, italiano. Acabo de ser curador de uma exposição das obras caríssimas de Volpi num museu cuja presidente é banqueira, ouço com gáudio Mozart, Beethoven, Brahms, Schubert, Corelli, e estou relendo Anna Akhmatova e Konstantinos Kaváfis, este na impecável tradução de José Paulo Paes. Tudo isso certamente não me credenciaria a ser querido num futuro Estado pseudo-marcolês. Sou um intelectual brasileiro, essa categoria que o pseudo-Marcola tão percucientemente ironiza: ‘Vocês intelectuais não falavam em luta de classes, em ‘seja marginal, seja herói’? Pois é: chegamos, somos nós!’ (Em tempo: enquanto grito de guerra, ‘seja marginal, seja herói’ nunca me pareceu senão a imbecilidade que é, e que só transitou incólume porque durante a ditadura militar talvez não fosse mesmo de boa tática investir contra ele).


Ah, sim, ia-me esquecendo: sou também – ou pelo menos me considero – de esquerda. Quem sabe, então, não deveria ficar mais tranqüilo – já que a esquerda, supõe-se, seria a aliada histórica natural do pseudo-Marcola?


Ah, não, infelizmente essa ingenuidade já não tenho. Nada, nem no discurso do pseudo-entrevistado nem na lição do passado, me permite supor que, por ser de esquerda, eu seria poupado. Ser ou não de esquerda não iria servir a ninguém para nada. Na implantação do estado pseudo-marcolês não haveria tempo para questões de justiça, aliança, lealdade, princípios, ideologia – essas inúteis sutilezas de classe dominante. Assim como, garanto-lhes, não houve tempo para que Hitler e sua tchurma examinassem prévia e criteriosamente a lista dos mortos no expurgo de Roehm. Foi como deu, e pronto. Nessas, o crítico musical Willi Schmidt levou um tiro enquanto tocava seu violoncelo, antes que o executor percebesse que o nome na lista não era exatamente aquele. Havia uma diferença de um L e um D a mais ou a menos, uma coisa qualquer, assim. Uma pequena distração. E o Willi errado se foi.


O holocausto dos intelectuais humanistas


Voltando um pouco atrás. Resta outra hipótese. Quem sabe não valeria a pena o holocausto de minha classe, dos intelectuais humanistas e iludidos como eu – animais pré-históricos, diante dessa ‘terceira coisa crescendo aí fora, cultivada na lama, se educando no absoluto analfabetismo, se diplomando nas cadeias’, com toda propriedade (e de novo alguma poesia) descrita pelo pseudo-Marcola? Quem sabe não valeria a pena imolar tanto esquerdas como direitas, às tontas e às cegas, com a solene indiferença de um deus bárbaro, em prol do novo Estado pseudo-marcolês?


Mas será que temos motivos para crer que ele seria melhor e mais justo? Revoluções muito mais bem nascidas deram no que deram. Os 50.000 guilhotinados da Convenção deram em Napoleão, que deu nos 3,5 milhões de mortos do 18 de Brumário ao Grand Empire, que deu no Congresso de Viena, na reorganização reacionária da Europa, na restauração dos Bourbon na França, e na maravilhosa frase de Talleyrand sobre eles – que, essa sim, valeu a pena: ‘Não aprenderam nada, não esqueceram nada’. Lênin, coitado, deu em Stalin, que entre as repressões no campo, os expurgos e o Gulag parece que ultrapassou a marca dos 39 milhões de assassinados. Por enquanto o verdadeiro Marcola e o PCC não chegaram sequer às centenas. Mas se Marx tiver razão quanto à história se repetir como tragédia, antes de repetir-se como farsa…


Há alguns dias, neste mesmo Observatório da Imprensa a psicanalista Anna Verônica Mautner, uma criatura adorável, afirmou da pseudo-entrevista [ver remissão abaixo]: ‘Amei’. Declarou-a ‘maravilhosa’, e diante de sua apocrifia lamentou: ‘Queríamos todos que fosse verdade’. Todos quem, cara-pálida? Eu não, querida Anna Verônica. Não amei coisa nenhuma – e que maravilha que tudo era mentira! Estou agradecendo a Deus porque o pseudo-Marcola não existe. E a Arnaldo Jabor por toda a penosa mas excitante experiência.

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Crítico de arte e cineasta