Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Alberto Dines

‘Antes mesmo de computados os votos do referendo algumas conclusões já são visíveis. A principal delas, óbvia, diz respeito ao próprio instituto da consulta popular. O povo está gostando de participar do processo decisório porque já não confia naqueles que tem escolhido como seus representantes. Ou como diz o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) a respeito do fracasso dos seus pares em servir a sociedade: ‘Cada vez que se vota aqui nesta Casa o povo perde, então é bom que não se delibere nada.’

A Câmara Baixa, Casa do Povo, é hoje uma aberração do sistema representativo. Suas ilegitimidades datam do regime militar que deu ao eleitor nordestino mais poderes do que ao cidadão de outras regiões. A partir da eleição de Severino Cavalcanti escancarou-se uma tradição de chicanas, privilégios e omissões que levam o eleitor a preferir o recurso da manifestação direta.

As demais mensagens emitidas pelo debate em torno do referendo são igualmente transparentes. O crescimento do ‘não’ constatado na última sondagem de opinião parece conter um voto de protesto contra o governo Lula. Não apenas porque o presidente da República manifestou-se ambiguamente a favor do ‘sim’ mas porque é quase nulo o empenho de seu governo em combater a violência. Isso não significa que os governos anteriores tenham sido mais eficazes, o eleitor julga o mandatário atual, seu voto não é retrospectivo, é prospectivo.

Não são apenas o Legislativo e o Executivo os repudiados ao longo desta temporada. Embora o Judiciário não tenha se manifestado diretamente sobre a questão das armas, é grande seu quinhão no voto de desconfiança implícito tanto no ‘sim’ como no ‘não’. Se uma parte da sociedade ainda acredita que a Justiça tarda mas não falha, agora temos um contingente considerável acreditando que tarda e falha.

Decisões recentes da suprema corte perderam o seu caráter majestático e solene, questionadas abertamente pela sua parcialidade. O comiserado voto do relator em favor do hábeas corpus impetrado pelos advogados dos Maluf em face do ‘sofrimento de um pai preso na mesma cela do filho’ é piegas, não é técnico. O direito do cidadão de comprar uma arma para defender-se decorre de uma interpretação da Carta Magna que deveria ter sido feita anteriormente através de uma decisão judicial e a jurisprudência conseqüente.

Estrategistas ou militantes do ‘sim’ falharam na tentativa de transformar a questão da venda de armas num debate ideológico. Não é ideológico, nem político, muito menos partidário. Tanto que as duas posições são defendidas por frentes multipartidárias. Há progressistas que preferirão votar ‘não’, como haverá conservadores e liberais que votarão ‘sim’. Os defensores do status quo em matéria de compra de armas não podem ser injuriados como ‘direita raivosa’ nem os adeptos do ‘sim’ como ‘cúmplices de bandidos’. A defesa da lei e da ordem – considerada como marca reacionária – está embutida em ambas argumentações. Armados e desarmados invocam-na de forma ostensiva ou tácita.

Errou também o comando dos sim-istas ao acreditar que o apoio de artistas e celebridades garantiria a vitória de sua bandeira. Iludidos pela dinâmica do voto de cabresto mediático tiveram a sabedoria de mudar de tática quando ficou visível que não se sustentaria.

Esta panfletagem dita ideológica é antiquada, mofou, já não funciona num mundo permanentemente oxigenado pela informação. A filosofia política, como toda a filosofia, busca a compreensão da realidade, a realidade suprema, a causa primeira. No caso, é deletéria.

O referendo deste domingo é um sinal vital. Qualquer que seja o resultado, qualquer que seja o comparecimento, qualquer que seja o número de votos em branco ou nulos, já valeu. Pela extensão do debate que suscitou em segmentos pouco afeitos ao confronto de idéias e pela conscientização que deve provocar, recorta-se positivamente neste cenário de escombros políticos e morais do pior semestre da nossa República.’



Luis Fernando Verissimo

‘Interferência’, copyright O Globo, 23/10/05

‘Agora é tarde, Inez é morta, provavelmente a tiros, mas o debate vai continuar depois do referendo. E como muita gente se queixou que o referendo foi confuso, sugiro que da próxima vez que consultarem a população sobre o assunto simplifiquem a pergunta, colocando-a em termos corriqueiros, de experiências pessoais como as que estão todos os dias nos jornais, e que qualquer um entenderá. Por exemplo: se você fosse a mãe de um rapaz morto com um tiro numa briga de torcidas, preferiria que fosse mais difícil alguém ter acesso a armas como a que matou seu filho ou que seu filho também tivesse acesso a uma arma para poder se defender? Não é uma pergunta sentimental ou injustamente armada para favorecer um lado, eu até tenho dúvidas sobre como as ‘mães’ hipotéticas responderiam. Mas a questão é, ou era, simplificada, exatamente esta.

Os que pregaram o ‘Não’ invocaram muito a interferência indevida do estado na vida e no direito de escolha dos cidadãos. Vale a pena recordar outras ocasiões em que foram ouvidas queixas parecidas, na história do Brasil. Na abolição da escravatura havia tantos argumentos fortes a favor como contra a medida e – como no caso do referendo das armas – muitos dos antiabolicionistas nem tinham escravos, defendiam a escravatura em nome do direito de quem tinha de não ser coagido pelo estado. Não foi uma resistência emocional, foi racional e bem articulada como muitos dos artigos que lemos recentemente na defesa do ‘Não’, e o resultado é que atrasou a nossa história. O Brasil foi o último país do mundo a acabar com a imoralidade do escravismo. Mas algumas defesas da liberdade de ter escravos foram brilhantes.

Outro exemplo: a revolta contra a vacinação antivaríola no Rio de Janeiro, que chegou, violentamente, às ruas, mas começou na imprensa, onde Oswaldo Cruz era denunciado como uma ameaça pública pior do que qualquer epidemia. Foi preciso recorrer às armas para enfrentar a revolta, e alguns setores do exército aderiram aos revoltosos. A população do Rio foi vacinada literalmente à força. Livrou-se da varíola sob repetidos protestos contra aquela suprema interferência – subcutânea! – do estado na vida dos cidadãos. Oswaldo Cruz perderia um hipotético referendo popular sobre a vacina, na época, de zero.

O Brasil perdeu a oportunidade de dar um bom exemplo ao mundo na questão das armas. Mas estou escrevendo sem saber qual foi o resultado do referendo. Pode ter dado o ‘Sim’. Neste caso, se você leu até aqui, desleia.’



Carlos Heitor Cony

‘Referendo inútil’, copyright Folha de S. Paulo, 23/10/05

‘Na crônica de ontem, declarei que não votaria no plebiscito de hoje. É uma consulta escapista bolada pelo governo, além de hipócrita e sobretudo inútil. As alternativas, proibir ou não o comércio de armas, não resolverão o problema da violência que se alçou à ‘pole position’ de nossas misérias: concentração de renda, juros escorchantes, corrupção em vários níveis da vida pública, desemprego etc.

Comecemos pelo ‘sim’, cavalo-de-batalha residual da esquerda. Há crimes comuns, provocados por tensões domésticas, que não precisam de armas de fogo. A mãe de Hamlet, ajudada pelo amante, matou o marido enquanto ele dormia, pingando veneno no ouvido do pai de Hamlet. Com um punhal, Macbeth foi o ‘assassino do sono’. Otelo matou Desdêmona, em algumas encenações, ele usa o travesseiro, em outras, as próprias mãos. César foi morto a punhaladas. Uma jovem paulista, recentemente, com a ajuda do namorado, matou a pauladas os pais que dormiam. Cláudia Lessin Rodrigues, aqui no Rio, foi assassinada depois que a obrigaram a tomar uma overdose.

O pessoal do ‘não’ acredita que possuindo uma arma poderá enfrentar o bandido que continuará dispondo de um arsenal maior e mais letal. De nada adiantará ter a arma no armário ou no carro. A escalada da violência não é causada pelas armas, mas pelos violentos que, com ou sem arma, continuarão violentos. Repito um argumento que dei há dias: proibindo-se o uso dos termômetros, as febres não acabarão. O termômetro não acaba com a febre, apenas a indica.

Se fosse obrigado a votar neste referendo que me parece até imbecil, anularia o meu voto, seria uma forma de não votar. Para acabar com a violência, a obrigação do Estado é investir organizadamente na segurança. Para diminuir os crimes avulsos, provocados por rixas domésticas, ciúmes, desentendimentos de trânsito, a educação e a consciência da cidadania seriam mais eficazes.’



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‘Greve de voto’, copyright Folha de S. Paulo, 22/10/05

‘Se amanhã não for atingido por bala perdida nem sofrer um seqüestro-relâmpago, terei uma ditosa manhã, passeando pela Lagoa e vendo a plebe rude se esbofar nas zonas eleitorais para decidir se devemos abolir os termômetros para acabar com as febres -não, não é bem isso, o referendo é sobre outra coisa, se devemos aprovar ou condenar o comércio de armas.

Já faz tempo que decidi não votar em nada e em ninguém. Não precisam de minha opinião, nem mesmo eu preciso dela. Deixei de votar até mesmo na Academia, as coisas miúdas de lá, prêmios, moções disso ou aquilo etc. Não me sinto em cima de um muro. Simplesmente não vejo nenhum muro a separar a miséria humana.

O Estado, a mídia, os transparentes de diversos tamanhos e feitios, sobretudo os éticos de carteirinha, acreditam que a soberana vontade do povo pode acabar com a violência desde que haja um plebiscito sobre a venda de armas. São elas responsáveis ou pela nossa segurança pessoal ou pela violência que nos mata.

Os violentos não precisam de armas. Qualquer coisa, desde o insulto até o espancamento ou a facada, tudo serve ao violento para exercer a violência. Mesmo assim, embarcando na boa vontade do governo e da sociedade em acabar com os males que nos afligem, sugiro um plebiscito sobre o fim das penitenciárias. Nelson Hungria, um dos maiores penalistas que o Brasil já teve, dizia que a prisão é a universidade do crime. Além disso, por melhores e mais numerosas que sejam as prisões, elas não acabam, nunca acabaram com o crime e a violência. Servem apenas para gerar mais crimes.

Acabando-se com as penitenciárias todas, acaba-se com o problema dos presos, da superpopulação carcerária e das rebeliões e poupa-se dinheiro público que poderá ser aplicado em shows, passeatas e eventos contra a violência. Em havendo plebiscito sobre o assunto, o cronista talvez decida quebrar a sua greve de voto.’



Luciana Garbin

‘Consulta é destaque em sites internacionais’, copyright O Estado de S. Paulo, 24/10/05

‘O referendo sobre o comércio de armas de fogo e munição no Brasil foi notícia ontem nos principais sites de jornais estrangeiros e de agências internacionais de notícias. Além de trazer informações durante o dia sobre a votação em curso, eles passaram a publicar resultados parciais tão logo iam sendo divulgados.

Foi o caso, por exemplo, da BBC News, que apontou desde o início da apuração a rejeição à proibição.

Alguns veículos também repercutiram a vitória do não no referendo. Como a agência espanhola EFE, à qual o deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP) admitiu a derrota da posição defendida pelo governo e creditou o resultado à desorganização na campanha, feita segundo ele com base na emoção.

A CNN foi outra que acompanhou as apurações, usando material da agência Associated Press (AP).

A maioria dos veículos destacou na cobertura o pioneirismo mundial da medida e lembrou que as 17 milhões de armas de fogo em circulação no Brasil provocam a cada ano a morte de 39 mil brasileiros. Número que faz do País um dos campeões do ranking internacional de mortos a bala.

Além de falar ontem da eleição, edições impressas e online dos jornais e agências estrangeiros já vinham publicando nos últimos dias matérias especiais sobre o referendo e a violência no Brasil.

Para o diário argentino Clarín, o Brasil passou ontem por uma ‘votação histórica’. A notícia do referendo sobre a compra de armas disputou espaço com a eleição no país vizinho e comparou as legislações brasileira e argentina a respeito do tema.’



Hélio Campos Mello

‘Tiro no pé’, copyright IstoÉ, 25/10/05

‘O referendo das armas foi, no final das contas, um desastrado e estrondoso tiro no pé. Nunca se falou tanto em revólveres, pistolas, fuzis como nos 20 dias de campanha gratuita pelo rádio e pela televisão. Gente que nunca tinha pensado em ter arma saiu atrás de uma. A corrida para estocar munição também foi frenética. Como se estivéssemos sendo ameaçados de invasão por marcianos. Ou pelos argentinos. O assunto ocupou generosos espaços na mídia para tentar decifrar os meandros da lei que rege a compra, o uso ou a posse de armas e munições e, com isso, auxiliar o cidadão em sua escolha. Como aconteceu aqui na ISTOÉ. Isso na melhor das hipóteses. Na pior, esse espaço foi usado para convencer, de maneira escandalosa, arrogante e autoritária, o cidadão a digitar determinada tecla na urna eletrônica. Como não aconteceu aqui na ISTOÉ. O referendo serviu também para armar e acirrar os ânimos da Nação, que acabou rachando ao meio, num lamentável todos contra todos: todos do não contra todos do sim. E vice-versa. Também, mais uma vez, fornecemos munição para o correspondente do The New York Times, o famoso Larry Rotten, que publicou reportagem na quinta-feira 20, na qual diz que ‘os brasileiros têm uma espantosa propensão a atirar uns contra os outros’. O Ministério do Turismo, em sua luta para aumentar a vinda de turistas para o Brasil, deve ter ficado bastante satisfeito com tal publicidade lá fora. Gastou-se no referendo mais do que se gasta em segurança. Sem falar na complicada elaboração do enunciado da questão. O não significava sim e o sim queria dizer não. Confuso, não? Confuso, sim, porque, se a pergunta formulada foi ‘O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?’, a resposta sim quer dizer não às armas. E a resposta não quer dizer sim às armas.

Nada disso teria acontecido se o eficiente Estatuto do Desarmamento, que entrou em vigor em 2004, não carregasse em seu corpo a exigência do referendo. O mesmo The New York Times disse que o Estatuto baixou em 8% as mortes por arma de fogo.

Nada contra os referendos ou plebiscitos. Por isso, propomos mais alguns. E, já que o assunto é violência, podemos começar com sim ou não para o aumento das verbas destinadas à segurança para que o Estado possa proteger melhor seus cidadãos. Outro pode ser sim ou não para o aumento das verbas destinadas à educação. Mais outro: sim ou não para diminuir as taxas de juros. Mais outro ainda: sim ou não para diminuir a carga tributária. Não temos nada contra a democracia direta. Ela é muito saudável. Mas há questões mais relevantes do que o sim ou o não à venda de armas e munições.’