Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Analfabetismo funcional da grande imprensa

Carta aberta ao editor da IstoÉ:

Caro Carlos José Marques,

Em primeiro lugar, gostaria de parabenizar os ótimos jornalistas da IstoÉ Amauri Segalla e Bruna Cavalcanti pela matéria sobre o “polêmico” livro “Por uma Vida Melhor”. Onde foi que eles cursaram Jornalismo? Pergunto para evitar que eu ou um amigo escolhamos a mesma instituição. Tenho 16 anos e curso o 3º ano do Ensino Médio. Modéstia à parte, faria um trabalho jornalístico infinitamente melhor. Parabéns. Cumpriram seu trabalho de informar tão porcamente quanto a concorrente Veja.

Um erro comum entre os críticos do livro didático é confundir língua e gramática normativa, sendo esta uma ínfima parte do que estuda aquela. A imprensa, em geral, buscou para tratar do assunto todo tipo de profissional, menos linguistas. E o pior: a maior parte dos que comentaram o livro não o leu (ou leu mal). Muitos trataram a língua como algo que foi congelado e que só possui uma forma e não como algo mutável que é. Como disse Possenti, “cada área tem seus bolsonaros”. Em matéria de língua, muita gente é conservadora (de direita ou esquerda). Se não formos atrás do livro e acreditarmos na mídia, fica parecendo que ele se ocupa em suas 150 páginas a “ensinar errado”, quando em menos de três ele constata um fato (fato há muito tempo estudado): as várias variantes do nosso português, da popular à culta (que não é nada mais do que a variante de prestígio, normatizada. O livro tenta simplesmente trocar noções de certo e errado (que não existem na língua) por adequado e inadequado para cada situação. Nenhuma novidade para linguística…

Verbos transitivos não vão para a passiva

Esquecem os “defensores da norma culta” (e esses desviam-se da norma no próprio discurso em que a defendem), e nisso incluo o senhor e seu grupo de jornalistas, assim como os de outros jornais, revistas e emissoras, que há não tanto tempo a forma “você” não existia; era “vossa mercê”. Perdemos alguma coisa com essa redução? Não, mas aposto que alguns basbaques da época devem ter ficado histéricos, pois estavam diante do “assassinato da língua portuguesa” (oooh!). Como é que passou um título tosco e sensacionalista desses para matéria de capa? Está no mesmo nível de construções como “Pedagogia da Ignorância”, “Desserviço à Educação” e “efeitos nefastos na educação dos estudantes”. Que Augusto Nunes e Reinaldo Azevedo forcem a barra para criticar o governo e Haddad (o que ficou claro, no final da matéria) ser também o objetivo de vocês, eu até entendo… Mas que toda a imprensa faça isso… (e agora generalizo injustamente). É difícil ler gente falando sobre o que não sabe.

E o verbo namorar? Está aí outro exemplo de como a língua muda. Ele era apenas verbo transitivo direto, porém o uso popular (ele, e não a imposição de uma academia conservadora qualquer que resiste a mudanças) possibilitou o que hoje está presente em muitas gramáticas: “namorar com”. Perdemos alguma coisa? Só ganhamos. Agora podemos namorar um livro que gostaríamos de comprar e namorar com a pessoa amada (que piegas!). E isso tudo só me faz lembrar do verbo “assistir”, em cuja transitividade indireta muitos gramáticos e professores de português ainda insistem. Ninguém mais usa isso na fala e poucos usam na escrita. O verbo “assistir” no sentido de “ver” é transitivo indireto porque temos também “assistir” no sentido de “prestar assistência a”. Mas hoje, ninguém assiste ninguém; ajudamos.

O que muitos esquecem ou não sabem – e o livro da Heloísa Ramos, do Cláudio Bazzoni e da Mirella Cleto faz questão de lembrar – é que “escrever é diferente de falar”. Tudo bem se quiserem escrever “assisti ao filme”, mas impôr isso na fala é maluquice. E outra: por que é que os grandes jornais publicam que “o jogo foi assistido por milhares de são paulinos e palmeirenses” se defendem fervorosamente a norma padrão? Que eu saiba verbos transitivos não vão para a passiva.

Complexo de vira-lata

Quero dizer também, senhor, que a variante popular também tem regras e gramática, ao contrário do que pensam, e ela tem toda uma lógica e regularidade. Mesmo na variante popular, por exemplo, ninguém vai dizer “o livros” porque isso não existe em qualquer variante do coloquialismo. A função da linguagem deveria ser comunicar, e não excluir. Então, ela deveria ser “errada” se não conseguisse se fazer entendida, se não houvesse comunicação. Nesse sentido, acho que causa menos dificuldade de interpretação “nóis vai pescá cos primo amanhã” do que uma sentença possibilitada pela norma padrão como “a tia da garota terminou de ler seu livro”. O livro de quem? Da garota ou da tia?

O pior de tudo é o desconhecimento e desinformação (para que serve a imprensa se ela desinforma?) que fazem com que alguns comentários contenham “nossas crianças vão aprender errado o português”. Nenhum jornalista se deu ao trabalho de fazer uma pequena pesquisa antes de falar besteira? Se o fizessem, saberiam que o livro foi feito para a EJA (Educação de Jovens e Adultos), que pela primeira vez vai receber o material do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático).

Essa balela de que estão assassinando a língua portuguesa não vem de hoje e tem relação com o que o linguista estadunidense William Labov chamou de “mito da Idade de Ouro”; Labov diz que as pessoas tendem a acreditar que a língua atingiu sua perfeição no passado e que desde então passou a deteriorar-se; assim, a língua está a cada dia e a cada inovação mais ameaçada.

Alexandre Garcia disse, na Globo News, que quem fala “os livro mais interessante estão emprestado” não consegue desenvolver raciocínio lógico. Ora, o inglês quase não possui concordância nominal e verbal e nem por isso deixa de ser usado na maioria dos trabalhos científicos atualmente. Há muito tempo já não se pronuncia o “s” do plural na língua francesa; isso torna a língua pior ou alvo de críticas pelos seus jornalistas? Ahh… O complexo de vira-lata… Só em Portugal se fala corretamente o bom e velho português…

Triste constatação

Sobre a matéria… Pagaram pau para Nélida Piñon para em seguida apresentarem seu argumento para darem mais autoridade a ele. E o argumentum ad hominen usado para desqualificar Heloísa “Campos”? Eu posso utilizar a mesma falácia para desqualificar a matéria dizendo “Autores desconhecidos, sem grandes feitos na área do jornalismo, Amauri e Bruna, revelaram serem péssimos no trabalho que fazem. E os argumentos do Marcos Vilaça? Comparou ensino da língua com o ensino da tabuada? Que gênio!

Aliás, muitas pessoas nesse debate deram demasiado crédito ao posicionamento da ABL, conservadoríssima e composta por 40 pessoas , entre as quais estão Paulo Coelho, Marco Maciel e José Sarney [na época em que escrevi o texto, ela nem tinha Merval Pereira]. E ignoram os posicionamentos da Alab (Associação de Linguística Aplicada do Brasil) e da Abralin (Associação Brasileira de Linguística) a favor do livro. Considere que eles são em número muito maior de pessoas e mais especializadas.

Senhor Marques, pergunte a seus jornalistas quem é “a maioria esmagadora” que condenou o livro. Quanto eles sabem sobre a língua e sobre a pedagogia do ensino da mesma? Seriam eles Reinaldo Azevedo, Augusto Nunes, Sarney, Ferreira Gullar, Lya Luft, Jabor, Clóvis Rossi, Merval Pereira, Dora Kramer, Bechara, Alexandre Garcia, Sérgio Nogueira e afins? Prefiro ficar com os “demagogos de plantão” e com as “vozes aqui e ali” de Ataliba de Castilho (curador do Museu de Língua Portuguesa e coordenador do NURC), Sírio Possenti, Marcos Bagno, Maria Marta Pereira Scherre, Mário Perini, Luiz Carlos Cagliari, Maria Helena de Moura Neves, Magda Soares, Stella Maris Bortoni-Ricardo, Dante Lucchesi, José Miguel Wisnik, Carlos Alberto Faraco, Cristovão Tezza, Gilberto Castro, Maria José Foltran, Antônio Carlos Xavier, José Luiz Fiorin ou Miriam Lemle.

Quero deixar claro também que a didática utilizada no livro não tem a ver com populismo, lulismo, petismo. Segue a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (cujo relator foi Darcy Ribeiro, utilizado por alguns colunistas como alguém que deveria estar se revirando na tumba. Só se for por causa da cobertura midiática, não por causa do livro) de 1996 e segue também os Parâmetros Curriculares Nacionais, da gestão FHC-Paulo Bernardo. Paulo Freire, que também foi utilizado como um possível crítico do livro caso vivo, também defendia “uma escola em que a criança aprenda a sintaxe dominante, mas sem desprezo pela sua” (retirei isso da última coluna na Folha de Pasquale Cipro Neto que, ao contrário do que a IstoÉ fez parecer, não acha que o livro “ensina errado”.

Até mais, caro Carlos, deixo meu desprezo pelo jornalismo da grande mídia, da IstoÉ, e meus parabéns pelo resquício de bom jornalismo que ainda há – Luiza Perozim (CartaCapital), Maurício Dias (CartaCapital), Eliane Brum (Época), Hélio Schwarsman (Folha) e Polliana Milan (Gazeta do Povo), além de possíveis outros que eu não tenha lido. Esses, diferentes da maioria, parecem ter lido ao menos o capítulo na íntegra e mostraram saber interpretar um texto e buscar embasamento com profissionais da língua. Triste constatar que os jornalistas e formadores de opinião com mais destaque estão entre os analfabetos funcionais, que são porcentagem grande dos brasileiros.

No fundo, eu também achei o livro ruim. Deveria ser “os livro tão” ou “os livro tá” no lugar de “os livro estão”.

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[Lucas de Carvalho Ferreira é estudante, Birigui, SP]