Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Anistia e história

Em suas edições de 12 e 13 de agosto, o jornal O Globo dá notícias sobre o prosseguimento da questão da Lei da Anistia e abre debate na sua sessão de cartas aos leitores a respeito dos últimos pronunciamentos. Curiosamente, todos os leitores que se exprimem apóiam as análises do próprio jornal, que sustenta o governo. Sem dúvida, O Globo é um ‘jornal de governo’ e sempre o foi, desde 1964. Prova que a democracia segue seu curso é que o jornal dá voz à Comissão de Mortos e Desaparecidos e ao Secretariado Nacional dos Direitos Humanos. Mas fica a aborrecida impressão que todos os leitores do jornal partilham a mesma opinião e que o debate está de fato encerrado, seja por declaração military, seja por piruetas do atual governo.

A questão da ditadura militar, da institucionalização da tortura, é que nem ferida. Não se pode cutucar, que sangra. E esta frase torna-se prova de sabedoria digna do Barão de Itararé. E se esquece que a única maneira de curar ferida é com remédio adequado. No nosso caso, tal remédio é lembrar a história e a experiência internacional.

Guias turísticos

No começo do século 20, os militares e policiais turcos cometeram crimes de guerra contra os armênios. Desde então, cada vez que possível, a sociedade civil tem lutado com dificuldades para responsabilizar os autores desse tipo de crime. Em 1983, os militares condenados por crimes contra civis na Argentina tiveram cúmplices que ameaçaram os próprios juízes que os julgavam. Em toda parte, a justiça encontraria dificuldades em responsabilizar e punir políticas de governos anteriores àqueles onde ela foi chamada a ser exercida.

A grande esperança veio da África do Sul e da criação da Comissão Verdade e Reconciliação, que fixou indenização única para todos os que sofreram com o regime racista que tanto durou no país. Esta homogeinização evitou os pedidos excessivos e qualquer corrupção. Tal comissão criou ainda a obrigação, para os torturadores e os criminosos, de se desculparem em público, só assim sendo perdoados. O caso mais impressionante foi o de Mandela, presidente e herói da resistência, que condenou seus torturadores a serem guias turísticos das prisões onde exerceram sua sanha.

A esperança se impõe

A imposição da palavra como veículo do perdão eliminou a burocracia. A anistia e as indenizações foram, assim, agilizadas. O Brasil escolheu outras vias, que desacreditaram a política e o debate popular. O Globo, em sua edição eletrônica do dia 28 de maio último, lembra o relatório de Anistia Internacional de 2008, que assinala, no Brasil, a impunidade dos torturadores e, logo, a disseminação e a popularização da tortura. Como não houve amplo debate popular, nem reconstituição da história, tortura-se em qualquer cadeira e criminosos se apoderam da tortura.

Mas a política e os políticos nunca formaram bloco homogêneo. Debates e lutas sempre existiram. Nenhuma comissão ou instituição jamais foi monolítica. Países com tradições bem mais ditatoriais que o Brasil o mostraram, recentemente. Decisões existem, umas acertadas, outras duvidosas, outras ainda errôneas. Mandela partilhou, em 1993, o Prêmio Nobel da Paz com Frederik de Klerk, um de seus principais inimigos, presidente dos brancos na antiga União Sul-Africana.

Hoje, entretanto, o Tribunal Público Internacional critica a própria Comissão Verdade e Reconciliação por ter evitado condenações claras. Quem jogará a primeira pedra? E que justiça digna deste nome seria incapaz de se auto-criticar e rever suas decisões? Apesar do grande desânimo, a esperança se impõe, baseada na memória de antigas lutas pela verdade.

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Professor da Universidade européia da Bretanha Ocidental e diretor de pesquisa na Universidade de Paris 7