Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

As algemas da covardia

‘Se Machado de Assis existiu, então o Brasil é possível’ (Nélida Piñon, escritora)

A imprensa é, sim, culpada pelo resultado trágico do seqüestro de Santo André. Mas não pelos motivos até agora elencados. Os que criticam a mídia se resumem a apontar o sensacionalismo na cobertura do seqüestro, que atrapalhou as negociações entre a polícia e o seqüestrador, dando a este último uma sensação de onipotência. Entretanto, as raízes dessa tragédia são muito mais profundas. Sempre houve sensacionalismo na história da imprensa, faz parte de sua gênese, até de sua essência. Mas o sensacionalismo decorre das tragédias – não precisa, necessariamente, engendrá-las. Isso só ocorre quando a própria sociedade vira refém da mídia, tornando-se impotente para coibir-lhe os excessos.

Como Mitchell Stephens demonstra em sua História das Comunicações (Civilização Brasileira, 1993), o sensacionalismo não nasceu com os jornais populares norte-americanos da década de 1830, muito menos com a ‘imprensa amarela’ de Joseph Pulitzer e William Randolph Hearst, os quais, no final do século 19, rivalizavam entre si na cínica tarefa de mercadejar o sofrimento para as massas. Na verdade, o sensacionalismo é a própria imprensa. Não existe jornalismo sem um apelo aos sentidos. A análise em jornalismo, representada por artigos e editoriais, é uma atividade terciária que surge posteriormente ao fato e sua transformação em notícia. E fato só vira notícia quando desperta os sentidos. Por isso, já na antiga Roma, crimes e divórcios, especialmente as crucificações, eram o que mais chamava a atenção do público no Fórum Romano, o coração do império.

Criminalidade e violência

No início do século 17, na Inglaterra, folhetins impressos se empenhavam em noticiar não apenas os crimes, mas as próprias alegações dos criminosos para cometê-los. E, em 1690, Publick Ocurrences, o primeiro jornal publicado nos Estados Unidos, refestelava-se na tragédia de um suicida, que morreu enforcado e chafurdava na alcova do rei da França, que, segundo o jornal, costumava deitar-se com a esposa de seu filho. Mas, como observa Mitchell Stephens, ‘o reconhecimento de que um elemento de sensacionalismo é inerente às notícias não constitui, de modo algum, desculpa para abandonarmos os esforços para fortalecer o jornalismo, da mesma forma como a compreensão de que um elemento de agressividade é inerente à natureza humana não oferece uma razão para que se abandonem as tentativas para se reduzir as chances de eclosão de uma guerra’.

A história mostra que, em qualquer tempo e lugar, fatos como o de Santo André vão despertar a sanha do jornalismo-abutre. Ele é inevitável. Mas pode ser contido em seu gueto ético, como já ocorreu em outras épocas. E por que não foi? Porque a sociedade brasileira é refém de seus bacharéis. Assim como as favelas cariocas têm sua origem na arrogância dos médicos e engenheiros eugenistas do início do século passado, que varreram a pobreza para os morros, também a guerra civil da criminalidade, que assassina 48 mil brasileiros anualmente, decorre, em grande parte, da ética avessa dos cientistas sociais, que, à força de combater o Estado autoritário, acabaram legitimando o crime, ao fazer de cada criminoso uma vítima do sistema, isento de qualquer culpa. Prova disso é que a palavra criminalidade foi praticamente banida do vocabulário corrente. Tudo é violência.

Policial virou bandido

O termo criminalidade tem um referente imediato e preciso: as normas legais que o criminoso transgride. Já a violência é uma palavra difusa, que caracteriza até a indispensável repressão que o criminoso sofre. Os cientistas sociais sentem-se à vontade para usar como bem entendem a palavra violência. Quando aumentam roubos, seqüestros, assassinatos e estupros, o que está efetivamente ocorrendo é um aumento da criminalidade. Nunca há estatísticas precisas sobre violência porque ela engloba uma infinidade de atos não punidos pela lei e que, por isso mesmo, jamais são computados. Se uma criança briga de murro com outra e lhe tira sangue do nariz, se uma mãe bate de cipó no filho e lhe avermelha as nádegas, se dois bêbados trocam empurrões num bar sem maiores conseqüências, tem-se, aí, uma série de atos de violência que, por não serem crimes, jamais serão registrados com a precisão necessária para formar uma série estatística.

Logo, o que preocupa a sociedade e leva os intelectuais a conclamarem inócuas manifestações pela paz nunca é o aumento da violência difusa (que, reiterando, não tem como ser medida), mas o aumento da violência criminosa. Por que, então, esses intelectuais não promovem protesto contra a criminalidade e, sim, contra a violência, se é precisamente a criminalidade o que preocupa a todos? Simples: eles não poderiam enquadrar como criminalidade a justa e necessária repressão policial ao criminoso – e a criminalização da polícia sempre foi o objetivo último da maioria dos intelectuais brasileiros. Infelizmente, conseguiram esse objetivo. Quando a polícia enfrenta com balas de borracha um seqüestrador fortemente armado e o comandante do batalhão chega a dizer que trocaria o próprio filho pela vida da refém, é sinal de que a sociedade está do avesso – o policial virou bandido e o bandido virou herói.

Negociação pode ser impossível

Um soldado só ascende ao comando de um batalhão de choque depois de passar por provas sobre-humanas de resistência física e psicológica. Um seqüestro, por mais grave que seja, não é capaz de desnorteá-lo a ponto de dizer o que ninguém mais diria. Mesmo uma pessoa sem qualquer treinamento em situações de risco jamais vai dizer que entregaria o próprio filho para um seqüestrador. Pode até se dispor a entregar a si mesma, mas jamais o próprio filho. O que levou um experimentado comandante de batalhão de choque a fazer tal declaração? Sem dúvida, o desespero de parecer gente, de mostrar que também é ser humano. Chegamos num tempo em que o policial brasileiro se sente inferior ao próprio bandido como pessoa. A declaração do coronel Eduardo José Félix de Oliveira mostra a completa falta de norte da polícia brasileira. Não por culpa dela, mas da anomia em que o país chafurda. Émile Durkheim, o fundador da sociologia como ciência, não hesitaria em classificar a sociedade brasileira atual como anômica.

Um soldado só se faz na ação. E a ação não comporta uma ética intrínseca. Seus valores têm de vir de fora. Mas se a sociedade chafurda na anomia e transforma o criminoso em vítima, onde o soldado buscará esses valores para ser o instrumento da lei? Qualquer que seja a sua atitude, ele já está previamente condenado. Numa situação de alto risco, em que mortes são inevitáveis, o policial fica sem escolha: ou cumpre a lei e será assassino, ou não cumpre e será incompetente. O coronel Eduardo Félix de Oliveira optou por ser incompetente.

Compreendo o drama desse homem de bem: é muito mais fácil encarar a família como um incompetente do que como assassino. Porque seria esse o veredicto da mídia se o criminoso tivesse morrido. Entretanto, num caso de seqüestro, a morte não é somente o desfecho possível, como em outros crimes – ela é simplesmente o ponto de partida imposto pelo seqüestrador. Por isso, ao enfrentar um seqüestro, a polícia tem de estar preparada para matar. Dependendo da gravidade do caso, nem a vida do refém pode ser prioridade. Se o preço de um seqüestro é um lote de armas pesadas para uma quadrilha de alta periculosidade ou para terroristas dispostos a tudo, a negociação pode ser impossível e – em nome da paz social – o refém terá de ser sacrificado junto com os seqüestradores.

Brasil está criando super-bandidos

Nenhum especialista em situação de crise do mundo, por mais qualificado e experimentado que seja, pode garantir que um seqüestro terminará sem mortes. Se oferecer essa garantia, estará mentindo. O final de um seqüestro é sempre imprevisível. Vai desde a rendição do seqüestrador, com a entrega do refém, até a morte de ambos. O que jamais pode ocorrer é o refém morrer e o seqüestrador sair vivo. Se o seqüestrador atira na vítima, ele tem ser abatido imediatamente. Por isso, num caso de seqüestro, insisto, o ponto de partida é a morte e a polícia precisa ter carta-branca para matar.

Notem bem: se o refém morre, seu seqüestrador tem de ser necessariamente morto. Não pode ter tempo de se render. Trata-se de legítima defesa de terceiros – dever de qualquer um de nós, ainda mais do policial, que é treinado e pago para isso. Se o bandido mata e não morre, como ocorreu em Santo André, de que vale a polícia? Seu papel é servir de guarda-costas do seqüestrador, protegendo-o de um linchamento, enquanto ele mata o refém?

Infelizmente, tem sido esse o papel da polícia no Brasil. Desde Carandiru, a polícia foi algemada. Prova disso é que, quando há rebelião em presídio, ela não tem coragem de invadir o estabelecimento, mesmo que os líderes da rebelião estejam matando outros presos. Em setembro de 2001, sorrindo para as câmeras, Fernandinho Beira-Mar comandou uma rebelião em Bangu I e executou todos os seus rivais, enquanto a polícia olhava inerme, sem saber o que fazer. Não havia como impedir a matança a não ser matando. Mas matar bandido não pode. É atentar contra os direitos humanos. Uma aberração moral, que revela o Estado de anomia da sociedade brasileira. O que se faz com a polícia no Brasil é surrealismo de faroeste: o policial tem de ser o último a sacar a arma, o tiro nunca pode partir dele e, mesmo assim, ele tem de pegar o bandido vivo, de preferência sem arranhões, para não configurar tortura. Ao exigir do policial ações impossíveis até para super-heróis, ao mesmo tempo em que o trata como escória humana, o Brasil está criando super-bandidos. Não porque os bandidos sejam realmente super-homens – é que eles se fortalecem com a nossa covardia.

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Jornalista, mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás e comentarista do programa Falando Sério, da Rádio Interativa FM de Goiânia